“ESCREVENDO COM FOGO” – Do local ao global
Desigualdades e preconceitos sociais são marcas inerentes ao sistema de castas na Índia. Esta rígida forma de hierarquização da sociedade indiana remonta a certas leituras da religião hindu e separa os grupos sociais entre Brahmins, Kshatriyas, Vaishyas e Shudras. Abaixo de todas essas categorias estão os Dalits, considerados impuros e intocáveis, sendo alvos de discriminação, segregação e violência. Além disso, o machismo também é um problema crônico do país, visto, por exemplo, nos casamentos precoces arranjados pelas famílias do casal e na obrigatoriedade do trabalho doméstico para as mulheres. No documentário ESCREVENDO COM FOGO, diferenças de castas e de gêneros estão na essência de uma história que começa circunscrita em um país e avança para realidades mais gerais.
O ângulo para essa situação é aquele pertinente a algumas mulheres indianas. Mais especificamente, a narrativa assume a perspectiva das jornalistas que trabalham em Khabar Lahariya, a única organização de notícias exclusivamente feminina na Índia. Dirigido e produzido apenas por mulheres lideradas pela editora-chefe Meera, o jornal noticia eventos importantes e sensíveis na província de Uttar Pradesh, como corrupção, tradições religiosas milenares, política eleitoral, violência de gênero e precariedade dos serviços públicos. Enquanto o grupo de repórteres faz seu trabalho investigativo de cunho social, os papeis do jornalismo e das mulheres são redefinidos em busca da construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.
Sushmit Ghosh e Rintu Thomas até podem dirigir o filme com uma abordagem documental convencional, caracterizada por uma câmera que segue e observa a realização das matérias jornalísticas sem intervenções ou composições mais chamativas. Porém, a força das imagens captadas não se perde, graças ao teor que carregam. Tudo se inicia com o próprio recorte da obra, importante por excelência por enfocar um jornal diário feito somente por mulheres na Índia e ainda não tão conhecido por todo o mundo. A originalidade reside na perspectiva adotada, que não encontra paralelo em um número tão grande de outras produções. Então, seguir Meera, Suneeta, Shyamkali e as demais profissionais significa acompanhar um trabalho de publicização, denúncia e cobrança com relação ao descaso da polícia nas investigações de estupros de mulheres, à falta de saneamento básico em áreas de moradia de pessoas humildes e à opressão de mineradores sujeitos aos desmandos de mafiosos e de policiais corruptos. Em comum, estes e outros casos atingem, principalmente, os Dalits e as mulheres, sendo as mulheres dalits os alvos mais frequentes por razões religiosas e de gênero.
A mise-en-scène passa por mudanças mais expressivas quando o interesse da câmera passa a ser outro: as jornalistas que estão atrás dos smartphones que filmam os entrevistados e os cenários onde estão. Muitas vezes, elas olham diretamente para os documentaristas (e consequentemente para os espectadores) e partem de suas experiências pessoais para abordar temas mais globais. Meera fala sobre sua percepção a respeito das contribuições do jornalismo crítico para a democracia e da revolução do Khabar Lahariya, Suneeta divide as lembranças de seu passado em uma área pobre para falar do papel de mãe e dona de casa imposto às mulheres e Shyamkali relata como a educação é um fator transformador para ela mesma e para a sociedade como um todo. Além da interação discreta (que não chega a ser a quebra da quarta parede), a narração em voice over é outro recurso para entrelaçar as trajetórias específicas das três mulheres com debates amplos. Meera precisou equilibrar seus estudos com a criação dos filhos sem se sujeitar às pressões machistas da sociedades, Suneeta teve que enfrentar os riscos de um determinismo geográfico que poderia levá-la a reproduzir papeis sociais estranhos a ela e Shyamkali lida com as dificuldades do trabalho intensificadas pelo lugar de onde vem em sua família.
Em outras entrevistas, o relato a ser ouvido pelos diretores é o oposto. Os homens que fazem parte das famílias de Meera e Suneeta sustentam um discurso retrógrado, machista e opressor que, embora não as impeçam de seguir suas vidas de acordo com seus desejos, coloca sérios obstáculos no percurso e nega qualquer espécie de apoio. O marido de Meera sempre aparece em um canto distante, sendo filmado com uma expressão de contragosto e demonstrando descontentamento por ver a esposa fora de casa sem cumprir o que julga ser a obrigação dela, ou seja, os trabalhos domésticos. Já o pai de Suneeta insiste em planejar o casamento da filha, independentemente de ser esta a vontade dela ou não, enquanto fecha os olhos para o problema com o qual deveria verdadeiramente se preocupar, isto é, as precárias condições de sua moradia que não recebe energia elétrica. Como estes indivíduos não acolhem nem apoiam as mulheres, elas buscam força e conforto entre si, como fica evidente nas sequências em que se pode ver a viagem que fizeram para conseguir um alívio em relação a uma rotina tão desgastante.
Familiares que não estão do lado das mulheres jornalistas são apenas uma parte das dificuldades pelas quais passam. Passando para uma escala mais geral, o momento histórico no qual estão inseridas também pode gerar perigos e barreiras ao exercício da profissão e à afirmação de seus direitos como mulheres. A narrativa pontua um conflito que atravessa a realidade daquelas profissionais: a transição do jornalismo tradicional para o jornalismo digital. Usar um celular para gravar as reportagens e publicar os trabalhos em plataformas virtuais (Facebook, YouTube…) podem ser desafiadores por diversos motivos, desde a competição com grandes veículos de comunicação pelo ineditismo da notícia, quanto o desconhecimento das novas tecnologias por mulheres que historicamente foram excluídas de certos conhecimentos sob o discurso do fundamentalismo religioso. Além disso, a conjuntura política pode desencadear suas próprias ameaças, pois o jornal precisa cobrir as eleições regionais e nacionais, mas não é possível estar completamente preparado para a polarização política entrecruzada com fanatismo religioso de candidatos, grupos e mentalidades que se apropriam da fé, dos bens materiais e da posição social para exercerem seu poder sobre a população.
Curiosamente, este seria um dos momentos mais evidentes para o documentário trabalhar de modo mais direto a questão da linguagem digital como construção estética. Afinal, muitas telas transitam pela narrativa e fazem seus próprios recortes de sentido da realidade, como a câmera dos documentaristas que acompanham o Khabar Lahariya, a câmera dos celulares das jornalistas que registram os entrevistados e as telas dos vídeos que exibem as reportagens finalizadas e disponibilizadas no canal do jornal no YouTube. Embora não seja um elemento tão presente na concepção visual do filme, a linguagem das novas mídias faz aparições discretas em alguns momentos. Por vezes, o quadro assume o estilo de uma tela de gravação de uma câmera (quando alguma das repórteres produz um programa jornalístico especial com opiniões próprias sobre os acontecimentos da região) ou se conforma à moldura de um vídeo do YouTube (quando alguma matéria final é exibida e o alcance do jornal se amplia com o aumento do número de visualizações). Sushmit Ghosh e Rintu Thomas também redefinem a construção do quadro para mostrar uma sucessão de comentários dos vídeos, elogiosos quando o conteúdo é sobre reivindicações por mais direitos da população marginalizada e ofensivos quando a perspectiva passa a ser críticas ao grupo emergente nas eleições.
“Escrevendo com fogo” se desenvolve sem ter receios de evidenciar as contradições e aspectos sensíveis das trajetórias do Khabar Lahariya e do seu grupo de jornalistas. Dessa maneira, o documentário aborda os percalços e as oscilações que podem acontecer na vida de Suneeta e as dúvidas profissionais que podem afetar Meera. A cada nova reportagem produzida, a cada transformação na situação de Uttar Pradesh e a cada vitória ou frustração das jornalistas, o filme demonstra como a luta de algumas mulheres em uma província na Índia não se limita apenas àquela realidade específica. Tratando questões locais, o global se manifesta e cria vínculos com outras partes do mundo até demonstrar que o filme tem um alcance vasto. As trajetórias de Meera, Suneeta, Shyamkali e de suas colegas se expandem para abordar as condições das mulheres no mundo como um todo, a importância do jornalismo sério e crítico, a penetração cada vez maior das tecnologias em nosso cotidiano, as desigualdades sociais latentes por todo o globo e a perigosa combinação entre política e religião em contextos polarizados.
Um resultado de todos os filmes que já viu.