“ÉRAMOS CRIANÇAS” – As cicatrizes do passado [FCI 2024]
ÉRAMOS CRIANÇAS é um thriller inesperado que preenche uma lacuna ao explorar de maneira visceral temas como amizade, trauma e vingança. O filme nos conduz por uma narrativa crua e densa, que alterna habilmente entre passado e presente, convidando o espectador a montar, peça por peça, um complexo quebra-cabeça emocional. Cada revelação aprofunda a compreensão de laços intensos e de sofrimentos compartilhados, construídos ao longo de uma infância marcada por eventos traumáticos. É uma estrutura narrativa que, embora possa parecer intrincada, é essencial para criar uma experiência de imersão e de surpresa, culminando em uma impactante reviravolta final.
No centro da trama está um jovem carteiro conhecido como Cacasotto que, apesar de sua natureza pacífica, se vê preso após ameaçar um policial. Durante o interrogatório, ele começa a revisitar memórias de vinte anos antes, relembrando momentos ao lado de seus cinco melhores amigos de infância — Gianluca, Walter, Peppino, Margherita e seu irmão mais novo, Andrea. Este retorno às memórias revela segredos sombrios, relações marcadas pelo medo e pela dor, e alianças forjadas em momentos de extrema dificuldade. Conforme a narrativa avança, descobrimos que esses personagens compartilham um vínculo profundo, que os leva a uma jornada de vingança cuidadosamente elaborada e alimentada pelo rancor e pela mágoa que carregam desde a infância.
A história, escrita e dirigida por Marco Martani, utiliza saltos temporais como recurso para aprofundar a carga emocional e o suspense que permeiam o filme. Embora o uso de três linhas do tempo seja um desafio, o diretor consegue entrelaçar esses períodos de maneira coesa, guiando o espectador por um labirinto de memórias e traumas. Além disso, a Calábria se revela um elemento essencial na narrativa, funcionando como um fundo de tela sombrio que acentua a tensão e o desespero dos personagens. As paisagens áridas e os cenários urbanos decadentes contrastam com a inocência perdida da infância, criando uma atmosfera que reflete o desespero e a complexidade das emoções que os personagens enfrentam.
No papel de Walter, Lorenzo Richelmy traz uma performance intensa, que ressoa com a complexidade do personagem. Alessio Lapice, como Gianluca, e Lucrezia Guidone, interpretando Margherita, também entregam atuações cativantes, mostrando o peso de uma juventude marcada por segredos e sacrifícios. Massimo Popolizio, como o advogado Rizzo, é uma figura enigmática e crucial na trama, enquanto Francesco Russo, no papel de Cacasotto, consegue equilibrar a fragilidade e a determinação em uma interpretação tocante.
Para além de um simples thriller, “Éramos crianças” explora as cicatrizes de um passado sombrio que os personagens nunca conseguiram verdadeiramente superar. O longa sublinha temas desconfortáveis como a perda da inocência, o peso do trauma infantil e os ciclos de violência que parecem impossíveis de quebrar. Em várias camadas, o filme se torna uma crítica à maneira como dores não resolvidas na infância afetam o futuro, moldando decisões e trajetórias. A vingança aqui é tratada não como uma vitória, mas como uma armadilha que prende cada personagem em um ciclo devastador, em que a autodestruição é o destino inevitável.
A obra não é apenas uma exploração das consequências da dor e da vingança, mas também uma reflexão sobre o peso das memórias e o quanto estamos, muitas vezes, presos a traumas que nunca conseguimos realmente deixar para trás. A trama cuidadosamente estruturada pelo diretor entrega uma obra provocativa e emocionalmente densa, onde cada elemento, incluindo a Calábria, serve para intensificar a jornada emocional dos personagens e as cicatrizes que carregam.
* Filme assistido durante a cobertura do Festival de Cinema Italiano 2024.