“ERA UMA VEZ EM… HOLLYWOOD” – Celebração parnasiana
De acordo com historiadores da sétima arte, o período compreendido entre as décadas de 1920 e 1960 ficou conhecido como “Era de Ouro” de Hollywood, uma época em que o cinema estadunidense sustentou parcela considerável da economia do país através de filmes que se tornaram clássicos. Foi um período de início do star system – contando com nomes como, dentre outros, Judy Garland, Humphrey Bogart, Elizabeth Taylor, James Dean, Charlton Heston e Grace Kelly – e enfoque especial em westerns e musicais, de modo que a indústria ainda nutre muito carinho por esse momento cultural. Partindo de eventos reais relativos a uma tragédia, ERA UMA VEZ EM… HOLLYWOOD é um conto de humor negro que parodia e homenageia essa fase cinematográfica.
O protagonista do longa é Rick Dalton, uma estrela que começa a perceber o declínio na própria carreira. As mudanças do período também afetam seu dublê, Cliff Booth. Contudo, diversamente deles, a jovem atriz Sharon Tate, vizinha de Rick, está aproveitando uma franca ascensão. A trajetória dos três é distinta; o desfecho, por outro lado, os aproxima.
Da sua prolífica carreira, Quentin Tarantino faz dessa a sua ode mais franca à Hollywood (já que homenagens e referências estão também nos oito filmes precedentes). De maneira tarantinesca, ou seja, nada idílica, é exibida a realidade que poucos se atrevem a mostrar: a real. Não se trata aqui de tautologia, mas de apontar para o fato de que poucos cineastas enxergam o período áureo da indústria cinematográfica estadunidense com suas virtudes e seus podres. Tarantino não está realmente preocupado se Bruce Lee era arrogante e falastrão como em seu filme, ou se Steve McQueen era de fato apaixonado por Sharon Tate. Se quisesse ser fiel aos fatos, faria um documentário (fica aqui o alerta para quem espera um viés fidedigno).
Do ponto de vista narrativo, o roteiro é construído a partir de três personagens arquetípicas: a estrela descendente, a estrela ascendente e a incógnita. Rick e Sharon têm seus objetivos muito claros; na verdade, quase idênticos – ambos querem estar no topo como atores. Diversa é a situação de Cliff, que destoa deles por não ter um objetivo claro. Concretamente, enquanto os atos dos dois primeiros são coerentes, os de Cliff são bastante imprevisíveis, criando fatores inesperados no longa, embora também facilite que o espectador fique disperso (pois o seu objeto de desejo não é nada claro).
Leonardo DiCaprio explora muito bem um ator decadente e inseguro à beira do desespero, seja recusando propostas que considera aquém do seu talento, seja recorrendo ao álcool sem perceber. A cena em que Rick revela a própria vulnerabilidade perante uma atriz mirim é símbolo do quão frágil ele está no momento. Brad Pitt consegue tornar Cliff enigmático na medida certa (teria ele feito o que afirmam?), atuando com tamanha naturalidade que quase ofusca o rumo aleatório tomado pela personagem. Ainda, a química entre DiCaprio e Pitt é fenomenal. Margot Robbie pode criar expectativas por ser a única do trio a viver uma personalidade real, porém a participação de Sharon é circunstancial e com função narrativa bem diminuta. A rigor, ela é dispensável como engrenagem narrativa, subsistindo apenas pela função simbólica concernente ao Zeitgeist. O problema não é que Robbie tenha poucas falas (até porque Tarantino usa muito bem a linguagem não verbal, com ela e com outros), mas a aparição pendular e muitas vezes desconexa da trama.
Na montagem de Fred Raskin, há uso cirúrgico de split screen e raccords fenomenais – quando a câmera muda da piscina de Rick para a casa de Sharon, por exemplo, a maneira orgânica com que a transição é feita é de um requinte infelizmente pouco visto. O design de produção de Barbara Ling talvez tenha sido o setor com o trabalho mais exaustivo, bastando mencionar a contraposição entre as casas de Rick e Cliff – a do primeiro, em um bairro rico, luxuosa e espaçosa, com direito a um bar; a do segundo, quase oculta, minúscula e com sensação claustrofóbica (inteligentemente, porém, Tarantino mostra que, enquanto um tem a companhia do álcool, o outro, de um fiel animal de estimação). Notável, ainda, o figurino assinado por Arianne Phillips, que coloca o trio principal de amarelo e tons afins (mostarda, caramelo etc.), como alusão ao ouro da “Era de Ouro”.
Na direção, poucos cineastas dominam a linguagem cinematográfica com a maestria de Tarantino. Para fins de engajamento, começa o longa com imagens em preto e branco e razão de aspecto reduzida. O design de som evidencia a escolha do diretor em privilegiar a ótima trilha musical em prejuízo dos ruídos, reforçando que o objetivo não é exatamente imersivo. Prova disso é o uso de narração voice over, talvez o problema mais grave da película: no começo, ocorre para desmentir uma personagem (uma heterodoxa quebra da quarta parede); mais adiante, para acelerar a ação e verbalizar alguns acontecimentos. A opção estilística contrasta muito com a fluidez narrativa que prevalece no resto do filme, causando um defeito estrutural (por falta de uniformidade) e rítmico (a cadência vagarosa do desenvolvimento não se coaduna com a aceleração do desfecho).Seria inócuo elencar as referências da cultura cinematográfica presentes em “Era uma vez em… Hollywood”, sobretudo considerando que o próprio nome do longa é intertextual, relativo a “Era uma vez no Oeste” (de 1969, mesmo ano em que o filme se passa), de Sérgio Leone, mentor do subgênero western spaghetti, bastante reverenciado por Tarantino (a sequência no Rancho Spahn é um dos momentos em que a estética de faroeste fica mais evidente). Por vezes divertido por si só, por vezes nostálgico, o nono longa tarantinesco é uma celebração parnasiana de um pretérito que não merece ser renegado ao esquecimento.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.