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“ENTREVISTA COM O DEMÔNIO” – Batalha da fé contra o ceticismo

O sobrenatural pode colocar dúvidas naqueles que refletem sobre ele: haveria explicações racionais para eventos insólitos ou seria o extraordinário fora da lógica terrena o preponderante? É uma batalha entre a crença e a contestação. O cinema pode ser interpretado à luz de diferentes teorias: é uma manifestação humana que abre uma janela para o mundo tal como ele é ou manipula nossas sensações através das escolhas de seu realizador? É uma discussão sobre o poder das imagens em movimento. ENTREVISTA COM O DEMÔNIO trabalha a batalha entre a fé e o ceticismo quanto à existência de mundos além de nossa razão e à veracidade da imagem audiovisual.

(© IFC Films/ Divulgação)

Night Owls” é o nome do programa televisivo de Jack Delroy, composto por esquetes cômicas, atrações com premiações e entrevistas. Desde a morte trágica de sua esposa, o apresentador convive com a queda vertiginosa de audiência. Tentando fazer os índices do ibope aumentarem para desbancar seu adversário nas madrugadas, ele planeja um especial para o Halloween com a participação de uma parapsicóloga e de uma jovem sobrevivente de um suicídio em massa em um grupo satânico. O entretenimento a qualquer custo sai do controle quando forças obscuras passam a agir no estúdio.

Cameron e Colin Cairnes impregnam a narrativa da dualidade de um filme lançado em 2024 retratar a década de 1970 com uma abordagem tanto documental quanto artificial. O primeiro estilo aparece na ambientação típica daquele período histórico graças aos figurinos, à maquiagem e ao modo de ser dos personagens. Além disso, a abertura com uma pseudorreportagem captura o espírito da época nos EUA, marcada pela violência urbana, pelas disputas ideológicas da Guerra Fria, por conflitos como a Guerra do Vietnã e o pânico satânico decorrente do surgimento de seitas. Nesse panorama, o talk show de Jack emula os programas de auditórios com monólogos iniciais, plateia, banda e diferentes quadros, como o apresentado por Johnny Carson. Porém, a dupla de cineastas não esconde a afetação com que encena tudo que se passa nos estúdios e a textura da imagem, demonstrando que não há qualquer tentativa de impor um senso de realismo ao filme.

A crença de que o terror se resumiria ao subgênero sobrenatural é outro elemento a ser logo colocado em dúvida. Nos primeiros minutos, os diretores indicam que se trata de um found footage (a trama que gira em torno de fitas encontradas), já que a narração contextualiza que o espectador verá a gravação do último episódio de “Night Owls” e sinaliza que algo trágico aconteceu. Com o passar do tempo, a obra chama para si a ideia de uma investigação paranormal que tenta verificar se acontecimentos inusitados seriam provocados ou não por forças não humanas, ao estilo de “Ghostwatch“. Além disso, a narrativa coloca em primeiro plano as críticas contra a mídia sensacionalista que explora polêmicas a todo custo para atrair mais telespectadores e subir os índices de audiência, simbolizadas pelo protagonista e pelo produtor do programa. Nesse caso, semelhanças com “A montanha dos sete abutres“, “Rede de intrigas” e “O abutre” são inevitáveis. E a encenação também trabalha com as convenções das histórias de possessão demoníaca, pois o clímax envolve a participação de uma jovem que poderia estar possuída e seria entrevistada por Jack.

Estabelecidas as características do terror e o subtexto principal, o conflito entre fé e ceticismo transparece na sua dimensão temática. As atrações realizadas na noite de Halloween seriam farsas ou manifestações do paranormal? Para isso, alguns arquétipos conhecidos são desenvolvidos com segurança: o médium que se comunica com o mundo dos mortos, mas pode ser um charlatão; o investigador cético que se apresenta como superior porque consegue explicar racionalmente tudo que acontece; a jovem possuída que parece doce e angelical, porém se transforma radicalmente quando o demônio assume o controle do corpo; e o apresentador que se torna o mediador de cada quadro como um crente que fica à espera de grandes surpresas. Mesmo utilizando construções facilmente reconhecíveis, a abordagem não é sisuda nem fixa porque, ao contrário do que se poderia imaginar, há doses significativas de humor, ironia e apelação por parte de Jack. A atuação de David Dastmalchian é decisiva para imprimir comédia, drama e artificialismo às situações que podem ser um conjunto contraditório de tensão, seriedade e leveza.

Da mesma maneira que acontece com seu tema, a linguagem cinematográfica é igualmente estruturada pela dúvida entre crer no fantástico ou se apegar exclusivamente na lógica racional. A encenação deve se manter atenta ao efeito de realidade que a abordagem documental gera ou deve se abrir para uma intervenção mais explícita das subjetividades dos realizadores? A resposta é brincar com as duas possibilidades os recursos narrativos de um programa televisivo são mobilizados com fluidez e um carga quase maneirista. Os closes são exagerados, a montagem alinha os contrastes entre momentos de tensão e anúncios de comerciais e o estilo found footage é relativizado com cenas dos bastidores e durante os intervalos. No entanto, outras ferramentas permanecem contidas e sem explorar seus limites visuais com maior intensidade, como a divisão da tela para eventos simultâneos, as diferenças entre cenas coloridas e preto e branco e o uso de enquadramentos para a reação de personagens não captados pela câmera.

A confluência de convenções do horror e de estratégias narrativas de talk shows coloca ainda outra questão. Se os participantes do programa podem mentir, as imagens seriam confiáveis? As dúvidas se multiplicam quando se analisa a utilização dos diferentes pontos de vista das várias câmeras que filmam o programa. É desconfortável olhara para a jovem Lilly antes mesmo da possessão em virtude da postura que apresenta olhando fixamente para a câmera ou na direção dos espectadores e não para Jack. Mais adiante, Carmichael afirma que as imagens não mentem e podem esclarecer as farsas feitas para lucrar com a ingenuidade alheia. A afirmação pode ser contestada e convidar à reflexão sobre o poder de encantamento do audiovisual. Duas sequências específicas que lidam com a possessão e a negação de sua existência evidenciam o caráter fabricado das imagens, que não são a representação exata do mundo, mas a sugestão de um recorte da realidade através do olhar subjetivo de seu criador que orienta o olhar do espectador.

Se as imagens não são absolutamente confiáveis e estáticas, Cameron e Colin Cairnes podem manipular a percepção do público para acreditar no que eles quiserem ou para ficar na dúvida sobre o que eles quiserem. É assim que as cenas finais que se seguem ao clímax criam um misto de sensações conflitantes. O desfecho abandona a dinâmica do found footage para explicar didaticamente os acontecimentos no estúdio e os sacrifícios feitos pelo apresentador em nome da audiência? Ou sugere uma resolução fácil do ponto de vista dramático para, na verdade, apontar logo em seguida para outra possibilidade e deixar os espectadores novamente em dúvida sobre o que acreditar? A ambiguidade é a resposta para o resultado da batalha segundo “Entrevista com o demônio“.