“ENTRE MULHERES” – Um sonho de dignidade
O título original de ENTRE MULHERES, “Women talking” (“mulheres conversando”, em tradução livre), é bastante fiel ao que a obra, resumidamente, retrata uma longa conversa entre mulheres bem diferentes sobre assuntos de especial interesse feminino (mas que, a bem da verdade, abordam toda a sociedade e seu funcionamento). Os diálogos representam uma parábola sobre a condição feminina que vão muito além da sororidade e miram na dignidade para todas.
Em uma comunidade religiosa isolada, as mulheres sofrem misteriosos atos de violência física e sexual. Certo dia, descobrem que o mistério é mais simples do que pensavam e que as agressões eram perpetradas por homens protegidos pelos anciões. Ao receber um ultimato, elas percebem a oportunidade de exigir mais que a responsabilização dos culpados, mas uma nova condição.
O que a diretora Sarah Polley tem em seu filme, que também roteiriza a partir do livro de Miriam Toews, é um verdadeiro manifesto (nas suas palavras, “um ato de imaginação feminina”). Do ponto de vista intradiegético, o texto é direcionado expressamente a um bebê como se fosse uma carta, o que pode ser interpretado como um estímulo às novas gerações. As mulheres daquela comunidade foram subjugadas e maltratadas por anos, sentindo um sufocamento que as faz rir com a mesma intensidade com que gostariam de chorar. Elas estão contra o patriarcado, um sistema que percebem ser corrupto.
Como resultado, há personagens que corporificam uma beligerância latente, em especial Salomé e Mariche. Preocupada com a filha de quatro anos de idade, a primeira reconhece que se tornará assassina se elas decidirem permanecer na colônia; não admitindo os erros apontados por Ona, a segunda a ofende. Claire Foy e Jessie Buckley transmitem em, respectivamente, Salomé e Mariche, a hostilidade que faz parte de suas naturezas, levando a momentos acalorados do debate. Há então um contraste com a moderação de Ona, vivida por Rooney Mara, um trio que apenas não funciona melhor por não constituírem personagens.
O fato de o roteiro não criar personagens não seria um (pequeno) defeito se isso fosse compensado com uma narrativa melhor desenvolvida. O que há de melhor no longa, sem dúvida, é seu teor argumentativo, que varia entre o metafórico (Greta e seus cavalos) e o semântico (a diferença entre deixar um local e fugir dele), com temas que podem ou não ultrapassar os limites do debate principal. É o caso da religiosidade: discutir a natureza divina pouco se relaciona com a condição feminina, diferentemente de explorar como as instituições religiosas colocam a mulher em inferioridade. Seria melhor se Polley aproveitasse mais o aspecto teológico do texto por representações imagéticas (reduzidas praticamente a uma cena de lavagem de pés e plongées), mas é notória a proposta da cineasta de se afastar de um teor inadequado – leia-se, vitimista e voltado a espetacularizar a misoginia. O que a realizadora deseja é elaborar uma obra construtiva sobre o assunto abordado, não exibir um sofrimento que já é de reconhecimento comum para pessoas de bom-senso.
Para ser construtiva, Polley precisa de personagens como August, interpretado com doçura por Ben Wishaw, e, para balancear, personagens como a de Frances McDormand. Enquanto ele é o clássico aliado na causa, ainda que externo a ela (se desculpando por intromissões supostamente indevidas sempre que Mariche o repreende por não ter lugar de fala), ela se recusa a aceitar qualquer decisão que não seja o irrefletido perdão, justificado religiosamente. A cicatriz no rosto da personagem deixa claro seu backstory sofrido, porém sua função é apenas mostrar que há figuras intransigentes na direção contrária a seus próprios interesses. Argumentativamente, a deliberação caminha por vias complexas, como a noção de “abuso de perdão” e o olhar não unidirecional da culpa.
Não é necessário, assim, expor o sofrimento daquelas mulheres. Graficamente, isso se representa pela fotografia – cujo filtro dessaturado demonstra uma realidade extremamente amarga, oposto ao flare que aponta por uma esperança futura – e pelo figurino – cujas cores escuras (marrom, cinza e preto) são a expressão da opacidade que cerca as personagens. É uma opacidade que, contudo, não as impede de possuir o sentimento materno, a sua fé e a sua integridade. A exaltação na conversa pode acabar sendo, por vezes, o modo pelo qual conseguem progredir na deliberação, que depende do contraditório e eventualmente de faíscas. É tudo por um sonho; elas estão sonhando acordadas, como em “Daydream believer”, para sair de uma triste realidade que ainda assola as mulheres.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.