“ENTRE FACAS E SEGREDOS” – Revitalização do gênero
Equilibrar uma história de mistério com humor leve e genuíno não é tarefa fácil. ENTRE FACAS E SEGREDOS se propõe a abraçar uma estrutura narrativa à Agatha Christie enquanto adota parâmetros contemporâneos de humor com um elenco estelar. A proposta é bem arriscada.
Na trama, Harlan Thrombey, um celebrado escritor de romances policiais, é encontrado morto após comemorar seu aniversário de oitenta e cinco anos. Para a investigação, a polícia conta com o famoso detetive Benoit Blanc, que desconfia de todas as pessoas próximas ao falecido, dos familiares aos empregados. Quanto mais ele investiga, mais descobre seus segredos.
O primeiro desafio do roteirista e diretor Rian Johnson é construir um mistério consistente. No final, a narrativa se torna acelerada e repleta de reviravoltas, o que surpreende quando comparado a um primeiro ato que já revela o mistério aparente. É previsível, de todo modo, que há muito mais para ser revelado. O acaso eventualmente atrapalha as personagens (como o cachorro levando a madeira a Benoit), contudo o contrário também ocorre (a fita da gravação) – consistindo, nesse caso, em deus ex machina. No saldo, o texto é sólido o suficiente para prender a atenção do público e não recair em contradições.
Os acertos também estão no excelente uso de flashbacks como ferramentas narrativas inventivas. Por vezes, são usados como subjetividade mental, opondo os fatos (vistos) ao que é narrado (voice over) – isto é, enquanto uma personagem fala algo para os investigadores, conteúdo diverso é exposto ao espectador, que é quem tem uma visão mais ampla da situação. A ideia não é enganar a plateia, mas diverti-la com o inesperado. Ainda, em outras cenas, os flashbacks são reconstruções fidedignas do pretérito diegético. É nesse contexto de retorno ao passado que a narrativa desamarra seu nó inicial para revelar uma teia bem mais complexa.
As personagens são cativantes mais pelo gabaritado elenco do que pelo script, que é modesto nessa área. Benoit e Marta (enfermeira de Harlan) são centrais na narrativa, quase como Sherlock e Watson (referência dita por ele, uma das várias metalinguísticas). Daniel Craig revela nova faceta no papel do detetive, considerando que o constrói com humor falsamente acidental, algo bem diferente do que ele costuma fazer na carreira (com papéis sérios). Benoit Blanc é como Hercule Poirot (principal parâmetro) e Jacques Clouseau, aquele que é engraçado sem perceber (mas que, no final, resolve o caso). Com um sotaque bem elaborado (destacando-se o timbre agudo) do qual ele quase nunca se esquece, ele é um dos pontos altos da comédia da película – nesse quesito, a obra tem piadas de bom nível (merecendo menção a sátira dos cidadãos estadunidenses que acham que todos os países da América do Sul são iguais).
Marta é interpretada muito bem por Ana de Armas, possivelmente a que tem o melhor desempenho no longa. A atriz compõe com destreza uma mulher que se divide entre a emoção e a razão, com a adição, pelo roteiro, de uma peculiaridade formidável. Trata-se da sua reação às mentiras, que se torna instrumento cômico (é realmente engraçada), interpretativo (pois ela precisa demonstrar desconforto) e narrativo (o encaixe feito na trama é bem engenhoso). Salvo por essa liberdade poética, Marta é ainda a personagem mais real do filme, com ênfase ao tratamento dado pelos familiares de Harlan.
Christopher Plummer não tem muito tempo de tela com Harlan, situação que não é muito diferente para os outros grandes nomes do elenco. Verdade seja dita, é difícil dar igual espaço a Jamie Lee Curtis, Chris Evans, Toni Collette e Michael Shannon. Curtis é a filha mais sóbria do escritor; Evans é o neto problemático; Collette, a nora histriônica (o exagero da atriz é um dos poucos destaques negativos); Shannon, o filho que vivia à sombra do genitor. Todos tinham motivos para matar Harlan, todavia o roteiro prefere ser rebuscado ao criar rodeios e ganhar corpo. Há um esforço notório em não ser óbvio – sem olvidar o espaço encontrado para trazer subtramas, como os conflitos familiares e a questão imigratória e xenofóbica.
Na mise en scène, Johnson utiliza bem o seu elenco para, graficamente, fazer de “Entre facas em segredos” um filme de mistério que não seja exageradamente sério. Um simples artefato (o das facas) no aposento dos interrogatórios é usado de maneira simbólica e com elogiável função narrativa. Impressiona a criatividade em arquitetar um conjunto tão coeso. Tecnicamente, sobram acertos, sobretudo no design de produção de David Crank, que monta o cenário quase exclusivo como um deslumbrante tabuleiro do jogo Detetive (o que é mencionado textualmente). O detalhismo da arte da casa de Harlan é um espetáculo à parte, engendrando mensagens nos menores objetos (como uma caneca).
O risco que a produção assume termina em uma gratíssima surpresa. Ao invés de reciclar histórias, a opção por criar uma original que reverencie as antigas se revela um belíssimo acerto decorrente dessa ousadia. Para quem gosta de filmes do estilo, é um deleite estético e intelectual. Quiçá a roupagem pós-moderna conseguirá revitalizar um gênero engessado em épocas distantes e clichês cansativos. Apenas a fuga a esses elementos já reserva ao filme um lugar de destaque. Mais que isso, somente a História poderá dizer.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.