“ENOLA HOLMES” – Estrutura prazerosa de mistério
Desde que Arthur Conan Doyle criou o detetive Sherlock Holmes, muitas versões e leituras já foram feitas. Houve interpretações mais clássicas (“As aventuras de Sherlock Holmes“) e mais ousadas (“Sherlock Holmes” de Guy Ritchie). Recentemente, uma nova abordagem altera a dinâmica e a perspectiva para as histórias detetivescas: uma narrativa moderna, voltada para o público jovem adulto e guiada pelo olhar feminino na Inglaterra do século XIX, construída pelo longa original Netflix ENOLA HOLMES.
Tendo como base a série literária “Os mistérios de Enola Holmes“, escrita por Nancy Springer, o filme acompanha a personagem título em seu amadurecimento. É uma adolescente de 16 anos, irmã do renomado Sherlock Holmes e criada de forma pouco ortodoxa pela mãe, Mrs. Holmes. Quando sua mãe desaparece, deixando dinheiro para que a filha fizesse o mesmo, a jovem inicia uma investigação para descobrir o paradeiro dela. Na jornada que percorre, vai contra os desejos do irmão Mycroft, decidido a enviá-la para um colégio interno.
No arco dramático principal, a protagonista precisa desvendar o enigma em torno do desaparecimento da mãe. Enquanto isso, os espectadores desvendam a identidade curiosa de Enola, através três aspectos. Millie Bobby Brown utiliza seu carisma para criar uma personagem impetuosa, desafiadora de normas sociais e obstinada em encontrar seu lugar no mundo; flashbacks mostram a criação inusitada da garota, aprendendo artes marciais, esportes, ciência e arte; e a quebra da quarta parede faz a atriz conversar com o público olhando diretamente para a câmera para comentar cada novo fato. Se os dois primeiros recursos cumprem bem seu papel, o último é instável ao acertar quando ajuda na interação (críticas ao conservadorismo da época e convites ao público para participar do mistério) e falhar quando explica didaticamente demais as soluções.
A fuga de casa representa também para Enola a recusa de ocupar o lugar atribuído para as mulheres na Inglaterra de 1884. Ao mesmo tempo que procura Mrs. Holmes, enfrenta Mycroft não aceitando se tornar uma dama capaz de se casar e se subordinar aos homens. Nesse segmento, outros três elementos compõem a construção dramática e visual: a ambientação histórica possui a luta feminista pelo direito ao voto e os debates sobre a questão no Parlamento; a montagem paralela encadeia cenas de embate entre os irmãos, símbolos da tensão entre machismo e liberdade; e a atuação de Sam Clafin materializa a indignação diante de uma sociedade retrógrada. Cada um desses aspectos também contribui para dar toques de suspense à narrativa, por levar a protagonista para direções inimagináveis.
Entre os rumos inesperados por onde os personagens seguem, um novo conflito se impõe. Além da busca pela mãe, Enola se vê envolvida na fuga do jovem Lorde Tewksbury de sua casa e da perseguição de um homem misterioso que tenta matá-lo. Nesse núcleo, o mistério ganha contornos de conspiração política, pois eles se encontram mergulhados em uma trama que coloca suas vidas em risco e contém interesses ideológicos antagônicos – é possível sentir o peso das ameaças através de sequências moldadas pelo gênero ação com perseguições e lutas corporais. Apesar de a produção se interessar por um recorte histórico de mudanças sociais e lutas feministas, algumas decisões podem soar controversas, não a caracterização de Enola como uma donzela indefesa (ao contrário, salva o Lorde em algumas ocasiões), mas sugestões de que a resolução do conflito possam vir das ações de homens.
Outra guinada na trajetória da protagonista ocorre em seu processo de autodescoberta. Por um lado, o convívio crescente com Sherlock lhe mostra que tem o talento de investigadora (o raciocínio rápido e as deduções complexas que aparecem nos flashes em que analisa pistas deixadas pela mãe, principalmente, com jogos de palavras) e que pode estimular no irmão mais velho a demonstração de afeto e não apenas o prazer por enigmas (a comedida atuação de Henry Cavill sugere uma visão particular para o detetive, embora possa desagradar alguns). Por outro lado, a percepção de que não precisa seguir exatamente os mesmos passos da mãe lhe convida a encontrar sua própria identidade, inspirando-se na educação recebida, mas traçando seu caminho livremente – no início, flashes com memórias da mãe serviam como referência (especialmente graças à afetuosa presença de Helena Bonham Carter), mais adiante, serviam como uma interlocução da qual a jovem poderia discordar.
Após leituras e releituras do conteúdo criado por Conan Doyle, a sensação de esgotamento poderia ser um obstáculo para o diretor Harry Bradbeer. Entretanto, ele vai a uma nova série de livros para inspirar seu projeto, produzindo efeitos ora positivos, ora irregulares. A jornada de amadurecimento tem seu valor, apesar de exagerar nas lições edificantes muito explícitas; o universo tão conhecido recebe um contexto social claro, embora texto e narrativa nem sempre se encontrem nas críticas; e o estilo de mistério transparece nas pistas e na solução das charadas, ainda que seja finalizado com muita exposição. A despeito de tudo isso, a experiência de entrar em cada mistério é prazerosa e dinâmica, conduzida por um ritmo e um elenco atraentes.
Um resultado de todos os filmes que já viu.