“ENCONTRO COM O DITADOR” – As imagens do trauma
Entre os anos de 1975 e 1979, uma revolução socialista foi realizada no Camboja sob a liderança do Partido Kampuchea, cujos membros eram chamados Khmer Vermelho. O projeto de uma sociedade justa e igualitária conviveu com a fome de grande parte dos cambojanos e a execução dos inimigos contrarrevolucionários. Os contrastes citados estão na base de ENCONTRO COM O DITADOR, filme de ficção inspirado em uma história real que coloca em questão o desafio de representar o que não pode ser representado à época.
No Camboja de 1978, Pol Pot é o comandante da revolução e de um país que sofre com problemas econômicos e um genocídio não reconhecido. Nesse contexto, três franceses aceitam o convite do regime para divulgar os feitos dos revolucionários na expectativa de conseguirem entrevistar Pol Pot. O contato mais próximo com a sociedade e as autoridade socialistas revelam facetas escondidas pela propaganda oficial, causando situações que ameaçam as convicções e as vidas dos estrangeiros.
As reflexões sobre como contar em imagens o que foi o Camboja sob o poder do Khmer Vermelho e diante de tantos crimes são centrais para a narrativa. O partido deu muito valor à representação de Pol Pot através de cartazes e monumentos. Dois dos franceses são jornalistas, a repórter Lise Delbo e o fotojornalista Paul Thomas, e buscam filmar ou fotografar aspectos importantes daquela experiência política. Além disso, o diretor Rithy Panh já abordou a falta de registros materiais da violações de direitos humanos em “A imagem que falta“. No documentário, essa ausência é preenchida com a encenação de eventos através de bonecos de argila. Em seu novo trabalho, a dinâmica visual é resgatada sobrepondo as maquetes com os bonecos, arquivos reais da época e construções ficcionais com atores e atrizes.
Rithy Panh experimenta visualmente com os três registros imagéticos e produz diferentes efeitos dramáticos. Por vezes, ele funde no mesmo quadro as maquetes, as imagens remanescentes de época e o elenco de personagens criado pelo roteiro. Em outros momentos, dois deles são interligados como a narração dos atores justaposta à disposição dos bonecos nos cenários e o direcionamento do olhar do personagem para arquivos visuais reais do passado a partir de cortes da montagem. Há ainda passagens em que o cineasta posiciona a câmera com um ângulo baixo, centraliza as ações ficcionais em um plano com poucos movimentos, deixa a movimentação para os atores e subordina os indivíduos a um cenário grandioso. Tais características aproximam a ficção da estética das maquetes. Como consequência, a obra discute a representação da violência no limiar entre real e ficcional, presente e passado, tangível e intangível com tipos distintos de imagens.
O experimentalismo visual coexiste com o discurso político da trama. Desde “A imagem que falta“, o diretor trata dos traumas do país pelo viés do difícil ato de representar os vestígios das ações do Khmer Vermelho como uma necessidade pessoal e de sua geração. Portanto, as contradições de uma revolução socialista dedicada a formar uma sociedade igualitária que é acusada de perseguir opositores e provocar a miséria da população fazem parte do roteiro. Em primeiro lugar, a narrativa adota uma visão negativa do governo ao insinuar na trilha sonora e na montagem acelerada uma ameaça iminente para os três visitantes. No trajeto e na chegada ao local onde esperam pela entrevista e captam as primeiras informações, a trilha sonora de suspense anuncia um futuro ameaçador para eles. A sensação é reforçada quando veem os monumentos construídos em homenagem a Pol Pot e a decupagem intercala imagens do seu rosto e sons das ferramentas dos trabalhadores rapidamente.
Por outro lado, o conteúdo político em si contém alguns elementos instáveis ou, inconscientemente, ambíguos. O maior deles diz respeito ao tratamento dado às contradições da revolução e do governo posteriormente instalado. É possível perceber que há um esforço para não resumir as críticas e as deficiências do regime de Pol Pot a questões morais ou individuais, pois pontos complexos são levantados: quais são as responsabilidades dos líderes nos problemas do país? Como desenvolver uma consciência revolucionária de classe na população? Até que ponto os conflitos com o Vietnã explicam a permanência de mazelas? De que forma lidar com os inimigos da revolução e com pensamentos dissidentes? Todas são discussões não levadas adiante pelo filme, que as propõe sem enfrentá-las. Os arcos clássicos e as atuações sóbrias do trio de protagonistas amplia a percepção de que os dilemas e as divergências políticas são apenas arranhados.
Lise Delbo cumpre seu papel questionador de jornalista ao mesmo tempo que se preocupa com amigos do loca; Paul Thomas desafia diretamente as autoridades quando descobre as condições sociais do povo e fica em perigo; e Alain Cariou é o intelectual adepto do socialismo que se decepciona com os rumos do Camboja. As três trajetórias se encontram, de alguma maneira, com a questão da força da imagem. Em uma conversa entre Lise e Paul, ele duvida que outras pessoas acreditem somente nos relatos dos profissionais e, por isso, ela sugere filmar um depoimento do colega. Entretanto, a construção imagética tem seus próprios paradoxos, a exemplo da abordagem da figura de Pol Pot. O governante é sempre filmado envolto em sombras que o ocultam, algo que pode remeter ao tema da representação, desviar o interesse maior de uma suposta curiosidade pelo ator escalado para o personagem real ou vilanizá-lo de modo maniqueísta.
“Encontro com o ditador” confirma que a vida e a carreira de Rithy Panh são atravessadas pelas mazelas sofridas pelo Camboja na década de 1970. Indo além, o diretor se interessa também pelos limites representacionais de tragédias dolorosas e memórias traumáticas resultantes de lacunas de materiais que comprovem tudo que aconteceu. Isso se deu porque o regime do Khmer Vermelho destruiu vestígios ou impossibilitou a produção de vestígios. Em seu trabalho anterior, o próprio ato de narrar em condições adversas é o mote do documentário. Em seu mais recente projeto, questão permanece, mas se torna mais ambiciosa ao tratar de registros visuais diversos e debates políticos sobre as experiências passadas. A primeira dimensão explora ricas possibilidades narrativas e expressivas, enquanto a segunda oscila entre reconhecer a complexidade das variáveis e deixar de aproveitá-las na trama.
Um resultado de todos os filmes que já viu.