“EMILIA PÉREZ” – Musicalidade de novas vidas [26 F.RIO]
Extravagância pode ser uma palavra a ser imediatamente atribuída a EMILIA PÉREZ, um musical sobre narcotráfico mexicano e transição de gênero. As singularidades do filme podem ser vistas como uma identidade autoral ou uma combinação de elementos aparentemente desconexos. Para além de percepções apressadas que estranhem a profusão de cores, a fantasia cênica e a negação de um realismo estéril, a narrativa apresenta uma musicalidade cheia de energia que possui méritos e corre riscos para compor a trajetória de suas três personagens centrais e a evolução dramática dos conflitos. Logo, o senso de movimento molda as pouco mais de duas horas de projeção.
No México dos dias de hoje, a advogada Rita competente e desvalorizada que trabalha em uma empresa voltada para encobrir os crimes de seus clientes ao invés de prezar pela justiça. Um dia, ela recebe uma proposta inesperada de um grande narcotraficante local, decidido a se aposentar e desaparecer: passar por um processo de redesignação corporal e identitária para se tornar mulher. Manitas Del Monte passa a ser Emilia Pérez e precisa lidar com os dilemas de duas vidas distintas que ainda se encontram e entram em choque.
Musicalidade vibrante seriam palavras mais coerentes para o trabalho de Jacques Audiard, embora extravagância não precise ser um defeito. A primeira sequência dá o tom do que se verá até o desfecho, quando Rita canta e dança com um grupo de figurantes pelas ruas da Cidade do México. Os momentos musicais se revelam constantemente como formas de expressão das subjetividades das personagens, que não podem ser destacadas através de um diálogo tradicional. As canções e as performances aparecem para intensificar os conflitos a que estão submetidas as personagens femininas. Rita sofre por trabalhar em um escritório e atuar na advocacia sem encontrar um papel recompensador, já que tem consciência da culpa do cliente por agredir a esposa, mas apenas é assistente de defesa. Emilia Pérez é atormentada pelo desejo de ser a mulher que sempre sonhou e ainda querer preservar a família ao seu redor mantendo seu segredo. E Jessi sofre com o afastamento emocional do marido até acreditar que o perdeu e precisa recomeçar com os filhos e uma nova paixão.
A encenação das sequências musicais conta também com uma estilização que promove uma experiência estética e sensorial contagiante. O musical se adequa muito bem aos elementos fantásticos e Jacques Audiard explora a suspensão do curso lógico, objetivo e linear dos eventos para exercitar a construção de set pieces próprios de um universo com dinâmica particular. Os personagens coadjuvantes em cena são congelados, a luz ambiente é apagado, a iluminação estilizada se concentra nas figuras principais para a performance das canções, a temporalidade é redimensionada e a interação entre os atores ganha outra perspectiva dramática e interpessoal. Por exemplo, a conversa musical entre Rita e Emilia em um restaurante oculta tudo em volta delas com a escuridão para reforçar as cores quentes e a dimensão pessoal daquele momento; e o desabafo de Jessi ao ir para a casa de Emilia e acordar em um ambiente que a faz se sentir aprisionada é filmado como a fuga para um mundo fantasioso sob sombras e um centro iluminado com a coreografia de dançarinos.
Os riscos de estilo que o diretor assume contrariando expectativas de realismo e verossimilhança por parte dos espectadores penetram também nos arcos das protagonistas. Há três linhas narrativas e dramáticas que perpassam Rita, Emilia e Jessi, que criam grande quantidade de questões para serem trabalhadas e articuladas. A Rita de Zoë Saldaña parte do embate pessoal que trava entre seu esforço de utilizar a advocacia para marcar algo especial na sociedade e as limitações da justiça em seus termos racistas e machistas. Inicialmente, é uma contradição que impacta a personagem no julgamento de abertura por questionar seu lugar naquela existência. No decorrer da narrativa, esse arco desaparece e surge apenas pontualmente em outras sequências menos inspiradas (as críticas sobre a imagem pública de indivíduos corruptos e filantrópicos que apoiam a ONG criada por Emilia, bem como as dúvidas sobre o papel da advogada na associação fundada pela amiga). No fim das contas, ela se torna meramente uma peça auxiliar para as ações da amiga e um acessório constantemente esvaziado.
Jessi poderia ser uma figura relevante para a condução da trama se a obra conferisse maior peso aos seus dramas. Selena Gomez tem pouco tempo de tela e material dramatúrgico para utilizar na composição da esposa de um narcotraficante que vê sua vida passar por uma guinada radical. Nas poucas cenas em que recebe maior atenção, é possível perceber o que caracteriza Jessi: é deixada de lado por um criminoso que prioriza o crime e seu propósito de transição de gênero, o que a faz ter que cuidar sozinha dos filhos e se sentir emocionalmente desvalorizada. O percurso que atravessa é potencialmente interessante, pois envolve a solidão inicial, a perda inesperada do marido, a mudança da família para outro local, o convívio repentino com Emilia (apresentada como prima de Manitas), as insinuações de um caso extraconjugal do passado e a aproximação amorosa de outro homem. No entanto, ela também é ofuscada pela trajetória de Emilia e nunca ganha espaço significativo, por mais que tenha influência no terceiro ato. Desse modo, sua participação na conclusão parece desencontrada com o que se via até então.
Emilia Pérez puxa as atenções para si e monopoliza o desenvolvimento narrativo das personagens. Karla Sofía Gascón se apropria das múltiplas características, contradições e complexidades que compõem a protagonista para dar conta de uma figura que mais bem explorada pela narrativa. Ela transita por duas vidas que ainda parecem habitar sua trajetória, apesar de sua dimensão como chefe de cartel em um corpo masculino ter sido deixada para trás. Após o procedimento transicional, decide reorientar quem é e o que faz, por exemplo ajudando famílias a encontrarem os corpos desaparecidos de parentes mortos por traficantes a partir da atuação de uma ONG. Ao mesmo tempo, preserva traços de personalidade ou sentimentos ligados a Manitas del Monte, como a desistência de se manter distante dos filhos que o faz trazê-los para perto e a persistência de uma postura controladora violenta que a faz impedir Jessi de se afastar levando as crianças para outra casa com outro marido. Além disso, o recomeço também passa pelo encontro de afetos com outra mulher onde menos se esperaria.
Jacques Audiard continua se arriscando na maneira de tentar equilibrar discussões variadas no roteiro. Além da combinação já mencionada no primeiro parágrafo, o cineasta desenvolve a produção a partir do enlace entre ativismo social e história de crime. Na primeira perspectiva, as sequências musicais são menos inspiradas em termos de encenação (a visita de Rita a hospitais, a conversa entre ela e um médico e os relatos de familiares em busca das vítimas desaparecidas) porque deixam o conteúdo se sobressair à execução formal. Na segunda construção, os comentários sobre a violência urbana no México e a introdução de um crime para a transição do segundo para o terceiro ato se revelam mais frágeis diante do que se fazia até aquele instante. Ainda assim, não se pode diminuir o valor de “Emilia Pérez“, por mais que alguns sobressaltos apareçam pelo caminho, quando se está diante de um filme vibrante e de personalidade muito bem definida.
*Filme assistido durante a cobertura da 26ª edição do Festival do Rio (26th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.