“EM TRÂNSITO” – A ficção da fuga
* Filme assistido na plataforma da Supo Mungam Films (clique aqui para acessar a página da Supo Mungam Plus).
Christian Petzold é, sem reflexões delongadas, um dos grandes autores da contemporaneidade. Sua leva mais recente de filmes, começando com “Barbara” em 2012, consiste em um dos projetos autorais mais consistentes e rigorosos dos últimos tempos. É de se refletir, portanto, qual o elemento que une “Barbara” a “Phoenix”, e “Phoenix” a EM TRÂNSITO, e este a seu longa mais recente, “Undine”. A questão que parece perpassar os trabalhos de Petzold nessa década parece ser a dos mitos, da história e da História, de nossos vícios narrativos, semânticos, racionais, morais.
A descrição mais comum, e literal, de “Em Trânsito” é de que se trata de uma ocupação nazista, mas no século XXI. O que isso significa, qual o propósito dessa escolha? De onde vem a sensação de que tal anacronia funcionará? Há certa inquietação na experiência de assistir qualquer um dos filmes de Petzold, que consiste em certo deslocamento, uma sensação de que algo está errado, fora do lugar – o surreal em “Undine”, a perda da identidade em “Phoenix”. Aqui, a questão é explicita. Estamos fora do tempo. Mas nunca perdidos, o mundo segue inteligível. Como?
A jornada de Georg (Franz Rogowski) é uma de fuga, e “Em Trânsito” pode ser intendido como uma meditação sobre a impossibilidade dessa empreitada. Tudo no longa de Petzold opera na tensão emtre concretude e ilusão, ou realidade e desejos, presenças e ausências. Há uma questão ontológica em jogo aqui, que trata da capacidade do cinema de dar vida às coisas, colocar em movimento tempos passados, seres inventados. Georg escapa tanto que escapa de si, se passa por outro, adota outro nome, vive outra vida, em outro lugar.
A tragédia é a da consciência dessas ilusões. Se nomes como Hitchcock, ou Antonioni, tratavam de certa revelação, de mistérios solucionados, no tempo de Petzold as coisas já são sabidas, e, ainda assim, caímos nos encantos dessas ficções. “Em Trânsito” é permeado por imagens cíclicas, por confusões identitárias, por fantasmas vistos, projeções tridimensionais. Georg termina o filme na exata posição em que começou, a deriva, esperando por mudanças íntimas e revoluções políticas, mas incapaz de agir em nome desses desejos.
Há, então, de alguma forma, uma correlação em atividade aqui entre História e ficção. Há ilusões e vícios comuns, repetições trágicas, farsescas, que nos diminuem, nos apagam. Não se trata de negar fatos, de ignorar os aspectos objetivos de nossa experiência, mas de olhar para as armadilhas que se revelam quando nos isolamos, quando negamos nosso papel nessas histórias. O romance vivido entre Georg e Marie (Paula Beer) é sincero, profundo, possível na confusão espaço-temporal que esses personagens habitam. Mas não é plenamente real, e assim não pode durar. Não dura. Georg não pode escapar de si, Marie não escapa da abstração de seu marido, Richard não escapa de Marie. Há de haver um colapso, e há de haver um novo início, uma nova chance. E dessa vez, as coisas serão diferentes? Ou a história se repetirá, novamente? Petzold não tem respostas, ele nos faz a pergunta.