“EM GUERRA” – No coração do povo
* Filme assistido na plataforma da Supo Mungam Films (clique aqui para acessar a página da Supo Mungam Plus).
“A história de toda sociedade até nossos dias é a história da luta de classes”. Na abertura do Manifesto comunista de Karl Marx e Friedrich Engels, os dois autores propõem uma leitura de mundo a partir do materialismo histórico e das diferenças materiais entre o proletariado e a burguesia. Essa perspectiva pode servir de chave de análise para EM GUERRA, drama francês sobre as agruras de trabalhadores no mundo capitalista contemporâneo. Isso porque a narrativa diferencia o olhar de operários e não operários tanto pelos rumos dramáticos quanto pela abordagem estética.
O local dos conflitos é a fábrica Perrin na cidade francesa de Agen. Quando 1100 funcionários do ramo automobilístico correm risco de perderem seus empregos por conta do fechamento da empresa, a reação é fazer greve e protestar pela preservação dos postos de trabalho. Liderados por Laurent, os operários se organizam para pressionar as autoridades empresariais e políticas para impedir o desfecho prejudicial para suas vidas.
Nos primeiros minutos, o diretor Stéphane Brizé apresenta a situação vigente através da cobertura da imprensa: os trabalhadores paralisaram as atividades até conseguirem uma reunião com a diretoria, embora suas reivindicações estejam longe de serem atendidas. O formato da imagem assume características de programas televisivos, com indicações visuais da emissora, narrações em voice over e entrevistas dos personagens envolvidos. Tanto no início quanto em cenas mais adiante, o uso desse recurso cria impessoalidade e autocontrole emocional como se aqueles eventos mal afetassem os jornalistas que os acompanhavam – nesse sentido, a perspectiva de classe de quem está por trás da câmera não envolve sentimentos intensos e acelerados.
Diferentemente da postura muito contida da cobertura jornalística, os trabalhadores estão exaltados diante das injustiças que sofrem desde o momento em que o diretor não cumpriu sua promessa (o acordo era abrir mão de parte do salário e das bonificações para manter os empregos por cinco anos, o que foi descumprido dois anos depois). Tais informações são expostas nas discussões que travam com a direção da indústria, filmadas de modo mais vibrante pelo fato de a câmera ser colocada junto aos grevistas e se movimentar como se fosse um deles – com o recurso a narrativa adota um estilo documental que faz muito bem aos seus propósitos de inserir o espectador no centro das ações (ainda que, em certas passagens, os planos sejam encobertos, por exemplo, pelos cabelos dos personagens).
Como a maioria das sequências que enfoca os sindicalistas apresentam essa abordagem documental, as mobilizações por seus direitos transmitem grande vivacidade e uma energia pulsante. É assim que o público pode experimentar sensações vibrantes a cada nova tentativa realizada pelos operários para conquistar seus mínimos direitos, como acontece nas manifestações pelas ruas e nos debates exaltados com responsáveis pela fábrica, figuras do governo e lideranças do mundo empresarial na Europa. A sequência crescente de fatos e dificuldades impostas a eles, definida pela montagem, complementa a percepção de que eles realmente são personagens reais, movidos pela indignação e reunidos em torno de seus objetivos – logo, a escolha do cineasta é fazer de seu filme uma representação arrebatadora das camadas populares.
Se o diretor optasse por seguir predominantemente o olhar dos setores privilegiados, a produção se basearia em discursos e posturas muito frágeis. Ao invés disso, o roteiro escancara as contradições e os absurdos das atitudes da direção da fábrica (menosprezar os sacrifícios dos trabalhadores e argumentar que patrões e empregados estariam no mesmo “barco”); da truculência de policiais e da Federação das Indústrias (a recusa de receber os manifestantes leva à expulsão da sede da Federação sob a alegação de invasão de propriedade); do tímido apoio de políticos franceses (a fala moderada a respeito da liberdade econômica e o amparo simplesmente moral); e das posições economicistas dos CEOs das companhias (as ações sempre giram em torno de um conceito abstrato de competitividade).
Em outro sentido, desenvolver a narrativa pela perspectiva dos grevistas continua a demonstrar como eles são, de fato, figuras vivas e dinâmicas. Em algumas cenas, o interesse de Stéphane Brizé é mostrar as interações entre eles, seja quando confraternizam em um bar fazendo brincadeiras, seja quando discordam veementemente quanto aos novos rumos que os protestos devem tomar. Desse modo, o diretor não idealiza a classe operária como um bloco homogêneo imune a contradições e conflitos, pelo contrário, seu retrato tenta captar as possibilidades de união e afastamento dentro de um modelo capitalista e classista. Basta comparar os momentos em que os personagens recebem cartas de apoio de trabalhadores de outros países e outros em que cisões ocorrem, dividindo o movimento entre aqueles que pensam a greve como um instrumento de luta a longo prazo e aqueles que se preocupam com as condições de sobrevivência imediatas.
À medida que os esforços e os obstáculos crescem nas vidas dos sindicalistas, “Em guerra” se comunica mais com o filme anterior de seu diretor. Assim como em “O valor de um homem“, o realizador está interessado em valorizar a luta de trabalhadores marginalizados pelo seu sustento (repetindo a escalação de Vincent Lindon como protagonista) e não buscar uma lógica justificável para o capitalismo. Até porque em sua versão neoliberal, o sistema capitalista se apoia em explicações abstratas e etéreas (o mercado decide o próximo capítulo de tudo) e possui uma escala interminável de poder sob o pretexto de modernização e flexibilização. Não querendo viver dentro dessas esferas, o cineasta prefere a humanidade de Laurent, preocupado com o coletivo de trabalhadores, amoroso com a filha grávida e desesperado por algum futuro para seus companheiros. Por isso, seu desfecho é tão duro, impactante, assustador e real.
Um resultado de todos os filmes que já viu.