ECOS – Antologia experimental não narrativa [43 MICSP]
Se necessário descrever o filme islandês ECOS em poucas palavras, elas seriam as seguintes: antologia experimental não narrativa. O projeto é ousado, pois essas três características, isoladamente, já fogem muito do que é comumente visto nos cinemas. A ousadia talvez tenha sido excessiva.
Tratando-se de uma antologia, o longa tem mais de cinquenta cenas independentes, com histórias, personagens e cenários diferentes. Algumas cenas são mais contemplativas; outras, mais dramáticas. Em comum, a época de Natal e Ano Novo.
O trabalho de roteiro de Rúnar Rúnarsson (que também dirige a produção) é questionável para além da boa proposta. Não se olvida a boa ideia de reunir episódios diferentes das vidas de pessoas diferentes tendo um fio condutor. É essa a noção de antologia que dá certo, dentre outros casos, em “Relatos selvagens”. Entretanto, o filme argentino é uma antologia narrativa, diversamente do islandês. Embora uma cena com a câmera dentro de um navio em mar aberto possa fazer algum sentido no todo, não é uma narrativa, reduzindo, assim, as possibilidades interpretativas.
Algumas cenas, ainda que breves, são dotadas de uma dramaticidade surpreendente, mesmo que efêmera. É o caso, por exemplo, da mulher que se humilha perante o ex para ter a companhia dos filhos no Natal e da que pede desculpas por ter praticado bullying na infância. Algumas cenas têm mais vigor (a do atendimento de socorro por telefone) do que outras (a da briga no trânsito); algumas têm maior desenvolvimento (a do homem que esquenta comida no microondas) do que outras (a da casa pegando fogo). É justamente esse um dos maiores problemas da película: não há regularidade.
No todo, a capilaridade da obra é belíssima: ao invés de escolher histórias épicas, são feitos recortes mínimos de pessoas comuns em suas vidas igualmente comuns. É a beleza da ordinariedade. Contudo, a desconexão vai se tornando cansativa ao longo do filme, principalmente pelo desnível. Há cenas flagrantemente descartáveis, como a das mulheres de biquíni, ou mesmo vagas, como a do homem na câmara de bronzeamento artificial. É possível visualizar bem o comportamento dos islandeses no período (nem todos comem carne de baleia, mas o alimento é realmente apreciado), mas não sobra muito em meio a minutos supérfluos.
Do ponto de vista visual, o experimento de Rúnarsson é, em geral, espetacular. Os enquadramentos impecáveis são frontais, quando não diagonais – nesse caso, há ênfase na profundidade do campo, que acaba sendo importante. O campo é utilizado de maneira inteligente, como parte de um todo, o que implica a utilização do fora de campo. De certa forma, isso amplia a imersão do espectador, pois a diegese não se reduz ao que é visto. Assim, se um professor dá bronca em uma aluna, não é necessário que ambos apareçam, sendo plausível que ela seja vista, enquanto ele fica na posição equivalente à quarta parede (a mesma lógica vale na cena da mãe com o bebê). A cena do piano reforça o rigor técnico da obra, visto que não apenas aproveita a amplitude do campo, como faz um racking focus com precisão cirúrgica.
A câmera de Rúnarsson está sempre estática, o que denota amplo domínio da mise en scène, pois são as personagens que se movimentam. No mesmo sentido, quando há pessoas em cômodos diferentes, a parede que divide os aposentos é usada como divisória do plano, como se fosse split screen. Na montagem, um discurso na televisão é elemento de raccord. O filme é quase uma aula de técnicas de filmagem.
Não obstante, a técnica elogiável é ofuscada por cenas que, quando muito, se limitam à estética. É possível interpretar o prólogo, por exemplo, como uma limpeza espiritual que algumas pessoas procuram no Natal. Porém, nada substitui uma narrativa bem montada (não é à toa que a cena do pedido de desculpas pelo bullying se torna bem mais eficaz, ainda que brevíssima). Excluindo o que é descartável e desenvolvendo o que tem mais potencial, “Ecos” seria uma obra-prima.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.