“DUNA: PARTE 2” – As areias de Arrakis
Aparando algumas arestas em relação a “Duna”, de 2021, sua continuação, DUNA: PARTE 2, de 2024, representa uma expansão vertical em um universo riquíssimo. Chamar a obra de superprodução é um eufemismo, embora suas proporções colossais possam ser cansativas. O filme é ambicioso, sabe disso, se assume como tal e reafirma o potencial desperdiçado na exótica (para dizer o mínimo) visão de David Lynch expressa “Duna” (1984).
Seguindo os acontecimentos do filme anterior, Paul Atreides se apaixona por Chani à medida que se integra aos Fremen. Diante de um triste futuro que antevê, o herói, pressionado por todos os lados, precisa decidir entre arriscar perder tudo para enfrentar os tiranos e talvez dar uma vida melhor a um povo, ou consagrar seu amor e manter o status quo.
A escolha de Paul é deveras óbvia, mas o roteiro de Denis Villeneuve (que também dirige o longa) e Jon Spaihts (baseados na literatura de Frank Herbert) não tem a pretensão de causar surpresas substanciais no espectador. Dispensando o didatismo do filme anterior, dessa vez Villeneuve consegue ir mais fundo naquele universo particular. Dividido em cinco atos, o texto começa, é verdade, com uma contextualização, quando Paul é tido como potencial espião. Posteriormente, porém, o arco do protagonista ganha contornos mais concretos e Timothée Chalamet expõe de maneira excelente a evolução da personagem.
Ao lado de Chalamet está Zendaya, que mantém a personalidade forte de Chani, mas não consegue convencer como alguém apaixonada por Paul. Se a ideia é reforçar que seu senso de comunidade fala mais alto, as cenas de romance acabam sendo prejudicadas. Os vilões também decepcionam, sobretudo considerando sua unidimensionalidade (são motivados somente pelo poder, e para isso tomam quaisquer medidas necessárias). É um desperdício de Florence Pugh, Christopher Walken, Léa Seydoux, Stellan Skarsgård e Charlotte Rampling. Por sua vez, Dave Bautista tem um papel demasiadamente encolhido em favor de Austin Butler, cujo desempenho, por outro lado, é assombroso. Certamente a caracterização de Feyd-Rautha auxilia no desempenho do ator, com destaque para a pesada e assustadora maquiagem, porém as minúcias com que Butler interpreta são certeiras (a “baba” durante a luta, o semblante geralmente sério, o sorriso diabólico).
Tecnicamente, “Duna: parte 2” é com certeza um dos melhores filmes da sua (ainda inacabada) década. Assinada novamente por Greig Fraser, a incansavelmente árida fotografia se deleita nas areias de Arrakis com tons de dourado contrastante com as cores escuras dos figurinos (Jacqueline West também retorna). Uma ressalva ao dourado ocorre em uma ótima cena, com um preto e branco estonteante. A prevalência de efeitos práticos permite manter o – tão valioso para Villeneuve – senso de realidade. O fato de a maior parte das cenas em cenários abertos serem diurnas permite maior visibilidade, o que não é prejudicado com as toneladas de poeira, areia e explosões. É inteligente a forma com que são escolhidos os ângulos de filmagem nas dunas, que podem ocultar algo para surpreender e empolgar o público. Como no filme de 2021, a edição de som é primorosa, mas a inconfundível (no mau sentido) trilha musical de Hans Zimmer não é destaque positivo.
Villeneuve bebe de muitas fontes tanto do ponto de vista sonoro (o melisma árabe na trilha) quanto gráfico (as paredes do esconderijo com marcas similares a hieróglifos). O universo criado é inegavelmente sólido, seja na mencionada estética, seja no texto (a variação de idioma, a demonstração da ritualística etc.) Há referências que vão do coliseu romano às bandeiras e saudações similares às do nazismo. Em 2021, “Duna” elabora uma alegoria sobre a colonização de exploração. Sua continuação vai além, transitando tematicamente entre poder, sociedade e religião. O poder não é apenas um objetivo compartilhado por personagens distintas, mas uma perniciosa ferramenta de corrupção capaz de reduzir a confiabilidade de todos. O mundo de “Duna” é uma sociedade de castas e Villeneuve mantém a ideia de colonização na escolha do elenco: os que estão no poder são brancos, diversamente dos Fremen. Quanto à religião, o longa parte da premissa de que a fé tem um poder autônomo, o que se reflete nos Fremen, divididos entre aqueles que acham que Paul é o Lisan al-Gaib, o Mahdi, e os que o consideram um falso profeta. A crença tem caráter regional e os fundamentalistas, como Stilgar (Javier Bardem, em interpretação esplendorosa), são motivo de troça. A referência ao islamismo é mais do que clara, caminhando em uma linha tênue entre a piada afrontosa e o humor crítico (principalmente ao insistir no viés de confirmação de Stilgar, que é cômico, mas cuja repetição é desnecessária). Em mais de duas horas e meia, é costurada a aproximação entre poder e religião no seio social. O almejado paraíso, assim, se torna ambíguo, podendo denotar a recompensa aos fiéis, ou a retomada da (insuficientemente abordada) preocupação com o meio ambiente.
“Duna: parte 2” é um longa bastante denso e intenso, um épico autêntico e autoral que não se cansa de ser estrondoso. Cada batalha é magnificente, não sendo menos impressionantes as cenas sem ação. Mais do que nunca, Villeneuve tira o fôlego do espectador ao mergulhar nas areias de Arrakis.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.