“DOUTOR SONO” – Filme disfarçado
É fato incontroverso que os filmes de super-heróis têm dominado as telas de cinema há alguns anos. “O iluminado”, cultuado clássico de Stanley Kubrick (clique aqui para ler a nossa crítica), foi pensado e moldado enquanto um filme de terror, com elementos típicos do terror. Usando a paranormalidade como pretexto, DOUTOR SONO, a continuação da obra de Kubrick, é um filme de super-heróis disfarçado de terror.
Anos após os acontecimentos de “O iluminado”, Danny – agora simplesmente Dan – tenta seguir a sua vida superando os traumas do passado, além de lutar contra o alcoolismo. Tudo o que ele viveu pode retornar quando Abra, uma menina com habilidades similares às dele (a “iluminação”), precisa da sua ajuda para não ser capturada por um grupo de iluminados que sugam a iluminação alheia para prolongar suas próprias vidas.
O maniqueísmo é manifesto no roteiro escrito por Mike Flanagan (baseado na obra de Stephen King, também autor do clássico), que igualmente dirige a obra. O grande defeito do longa é justamente esse: Dan é o herói – ou melhor, super-herói, já que tem poderes – que precisa ajudar alguém em perigo; esse alguém em perigo também tem poderes (o overpower é gritante), mas precisa de orientação; no outro polo estão os vilões, vampiros sedentos pela iluminação alheia para continuar vivendo por muitos anos. Há uma cena do filme que é claramente de ação, com um enfrentamento digno do gênero.
O problema não é só o maniqueísmo, mas o seu desenvolvimento narrativo. Como se não bastasse uma transformação abrupta (em termos narrativos) de Dan, que abandona a barba e supera seus traumas (que retornam mais à frente, é claro, mas pouco é mostrado do seu processo de superação), a trama se torna simplista e, principalmente, incapaz de envolver o público. É uma falha bastante comum nos filmes de super-heróis: vilões incompetentes. O abismo dos poderes é tão grande que o longa se torna previsível no ato final – sem olvidar o emprego de deus ex machina e uma solução questionável para que a vilã principal seja enfrentada.
Nesse papel está Rebecca Ferguson, dividindo Rose entre a maldade encarnada e a dissimulada. Ainda no elenco, Jacob Tremblay, Bruce Greenwood e Cliff Curtis são desperdiçados em papéis minúsculos, enquanto Ewan McGregor se esforça, dentro do seu talento limitado, para ganhar os holofotes. É Kyliegh Curran, porém, quem realmente se destaca, a despeito de Abra não ser a personagem mais complexa. Há uma cena em que seu corpo é dominado por outro iluminado, momento em que a jovem atriz simula uma voz mais grave e novas expressões faciais e entonação vocal. É um trabalho admirável para alguém tão jovem.
Flanagan tem tido uma carreira prolífica no terror, apresentando uma melhora notória de, por exemplo, “Hush: a morte ouve” para “Jogo perigoso” (outro filme dirigido por ele que adapta um livro de King). Em “Doutor sono”, há uma preocupação evidente em ser fiel ao clássico dirigido por Kubrick, repetindo cenas de maneira fidedigna, levando a plateia ao Hotel Overlook de maneira convincente. Trata-se de uma continuação assumida enquanto tal, razão pela qual não assistir a “O iluminado” prejudica demasiadamente a experiência.
O prequel é reverenciado e respeitado, mas a sequência não tem uma fração da sua sofisticação. No design de som, os ruídos são coerentes, mas o uso intenso da batida de coração revela falta de critério. O mesmo ocorre na montagem, área em que, salvo por uma ótima sequência em montagem paralela (a que Bradley é pego pelo grupo de Rose), falta uniformidade – parece que a fusão é tão útil que se adéqua a quaisquer transições.
Por outro lado, seja pela fidelidade a “O iluminado”, seja por competência própria, o filme tem uma estética muito boa. A fotografia usa tons azulados para representar a iluminação em si (nas paredes, no vestuário etc.), porém a cor marsala surge para conectar Abra e Dan (na camisa dele, debaixo do jaleco, e em uma camiseta e uma jaqueta dela). Quando aparece o verde, há perspectiva de otimismo; no caso do roxo, a morte se aproxima. O CGI é competente e, quando necessário, assustador o suficiente (envolvendo personagens já conhecidos por quem assistiu à obra de Kubrick).
Se Flanagan apresenta bons valores em “Doutor sono” – notadamente o design de produção e a fotografia -, a estrutura formulaica da trama é desinteressante e ofusca simbologias discretas (o que não ocorre com as mais óbvias, como a metonímia das memórias como arquivos). Quando o filme, no primeiro ato, foge das obviedades, a lentidão das apresentações estimula o público a compreender o destino que a película vai tomar. Isto é, cria-se uma expectativa de uso de tantas personagens e narrativas paralelas. É uma pena que esse destino, em análise atenta, é um filme de super-heróis já visto e revisto algumas vezes. Com maior requinte, tudo poderia ser diferente. Mas Flanagan não é Kubrick nem sob disfarce.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.