“DOUTOR ESTRANHO” – Misticismo made in Marvel
O sucesso do universo cinematográfico da Marvel permitiu ao estúdio diversificar alguns projetos e apostar em histórias com identidade muito particular. Tivemos duas aventuras espaciais com os dois “Guardiões da Galáxia” e uma mística com DOUTOR ESTRANHO; em comum, esses filmes tinham o risco de soar estranhos ao padrão que o público já havia se habituado a assistir. No caso deste último filme, parece que todos os seus envolvidos reconheceram tais riscos e pisaram no freio para conduzir uma narrativa nos moldes seguros já construídos pela Marvel.
Acompanhamos a mudança drástica na vida do neurocirurgião Stephen Strange após sofrer um acidente de carro e ter suas mãos seriamente machucadas. Como os tratamentos tradicionais não surtem efeito, Stephen decide se aventurar pelo Nepal à procura de um misterioso lugar chamado Kamar-Taj e da cura para sua enfermidade. Ali, ele se descobre no centro de um combate contra forças malignas místicas e é treinado pela Anciã para obter poderes mágicos capazes de enfrentar Kaecilius, antigo discípulo dessa Maga Suprema da Terra, que foi seduzido pelas forças das trevas. A abordagem do filme tem o mérito de buscar ser uma aventura descontraída que não exagere na carga dramática nem abuse de um tom sombrio repleto de conflitos muitos densos; a tradição da Marvel de valorizar a diversão reaparece aqui, algo importante para contrariar um costume muito comum de dar ares sombrios e realistas às histórias de super-heróis, após a trilogia do Batman de Christopher Nolan.
Entretanto, o equilíbrio necessário entre ação, humor e conflitos dramáticos não está tão preciso como deveria. Há um excesso de piadas ao longo da narrativa que dificulta o desenvolvimento dos personagens e a compreensão dos momentos dramáticos envolvidos na trajetória desses personagens. O estilo de humor adotado pela Marvel esteve presente em quase todos os projetos do estúdio, porém sempre correndo o risco de ultrapassar a linha tênue que separa uma atmosfera divertida de uma perspectiva boba e simplificadora. As piadas em torno da capa do Doutor Estranho e de um bibliotecário oriental, dedicado a cuidar dos livros do templo de Kamar-Taj, acabam prejudicando o foco da narrativa.
Os problemas também aparecem na construção dos personagens. Não há uma preocupação em desenvolver com maior cuidado a natureza interna, os conflitos, as motivações e transformações ao longo das quase 2 horas de projeção. Então, o Doutor Estranho é o clássico e já muito visto personagem egocêntrico e arrogante que entra numa jornada de aprendizado para valorizar outra coisa além de si mesmo; a Anciã é o guru dotado de amplo conhecimento, encarregado de transmiti-lo a partir de treinos nada convencionais e atormentado por um conflito interno nunca devidamente explicado; e Kaecilius se apresenta como o tão conhecido vilão com um plano mirabolante de usar um poder gigantesco para o mal. Pronto! Nada muito além dessas caricaturas vistas em outros lugares. Não que haja qualquer tipo de culpa nas performances de atores e atrizes. Pelo contrário, aí reside uma louvável tentativa de todo o elenco para tentar dar mais veracidade e camadas aos personagens: então as presenças imponentes de Beneditch Cumberbatch (também destacado pelo seu trabalho físico, especialmente no tremor constante de suas mãos), Tilda Swinton, Mads Mikkelsen e Chiwetel Ejiofor (outro discípulo da Anciã) são importantíssimas nesse quesito.
Outro elemento que deixa a desejar é o desenvolvimento do roteiro. As potencialidades oferecidas por uma história que se volta para o lado místico, para a existência de outros universos e suas relações com a Terra poderiam resultar em temas, abordagens e viradas no enredo mais ambiciosos. Porém, nos limitamos a observar o clichê do embate entre o bem e o mal: evitar o grande plano do vilão baseado na tentativa de dominação/destruição do mundo tal qual o conhecemos. As cenas de confronto físico são muito bem coreografadas, apesar de restringir o avanço da história a soluções simples pautadas na definição de quem sairá vencedor em cada luta, deixando um pouco de lado todo o potencial daqueles poderes.
Tais problemas não impedem que “Doutor Estranho” tenha suas qualidades. Todas elas, basicamente, estão relacionadas à experiência visual como foi idealizada pelo diretor Scott Derrickson. O design de produção é cuidadoso para compor diferentes cenários que povoam a narrativa. Cada um deles pode ser facilmente reconhecido, desde os locais comuns de cidades conhecidas (Nova York, Londres e Hong Kong), até os universos paralelos fantásticos coexistindo junto à Terra. Nestes, a criatividade permite desenvolver um tom psicodélico orgânico para a trama. Essa riqueza visual é favorecida por um eficiente trabalho com o 3D. Apesar de não ter sido originalmente filmado com essa tecnologia, a conversão da projeção consegue transmitir uma profundidade de campo necessária para exibir a transição dos personagens nas mais diversas dimensões do espaço-tempo. Além disso, faz o público mergulhar no interior daquelas sequências, ultrapassando noções convencionais de altura, comprimento e largura. Essa sensação é ainda potencializada por uma montagem acelerada nas sequências em que o Doutor Estranho é apresentado aos outros universos e à capacidade dos poderes místicos.
“Doutor Estranho” parece sofrer um revés natural para os filmes da Marvel: segue tanto a lógica do humor do estúdio que diminui a importância de sua originalidade visual. Algo que não o faz resistir ao desafio da sobrevivência nas dimensões espaço-tempo. Diverte enquanto estamos no cinema. Mas quando saímos…
Um resultado de todos os filmes que já viu.