DOIS PAPAS – A diferença divertida [43 MICSP]
DOIS PAPAS tinha tudo para ser um filme tedioso. Bento XVI renunciou, Bergoglio assumiu como Francisco. Todos já sabem disso. E todos já sabem também que um pertencia à ala conservadora da Igreja Católica, enquanto o outro queria uma renovação. O que eles podem ter para falar que não seja conhecido? Com muito humor, o debate intelectual entre os dois surpreende como um excelente entretenimento.
O enredo do filme, em tese, é bastante simples: em 2012, o cardeal Jorge Bergoglio vai a Roma para pedir a sua aposentadoria para o papa Bento XVI. Este, porém, quer ouvir as razões da aposentadoria, no que aquele critica os rumos tomados pela Igreja. É o início de uma longa conversa sobre os assuntos mais variados, de The Beatles a celibato para padres.
O filme funciona por três fatores principais. O primeiro reside no roteiro, que introduz doses consideráveis de humor sem perder a profundidade do texto. Não seria exagero classificar o longa como comédia, embora use diversas linguagens, como drama e documentário. Entre uma oração interminável antes de comer e um contador de passos, são diversas as piadas propositais e acidentais na conversa entre Bento XVI e Bergoglio – aliás, o próprio prólogo é bem engraçado.
Seria lógico pensar que o assunto sobre o qual conversam praticamente se reduz aos rumos da Igreja. Contudo, o texto de Anthony McCarten vai muito além, navegando por águas inesperadas. O debate fica caloroso, com muita ironia por parte dos dois – esse é o segundo elemento para o sucesso da película, pois Anthony Hopkins e Jonathan Pryce estão espetaculares como, respectivamente, Bento XVI e Bergoglio. É claro que tudo começa com discussões como homossexualidade e preocupação com a pobreza no mundo. Mas a reunião eclode como um embate passivo-agressivo (ou mesmo agressivo, principalmente por parte do Papa), com falas como “então o que importa é a sua opinião, ao contrário do que a Igreja ensina em tantos anos?” e “pare de fazer piada com tudo, não seja cínico”.
Com os avanços na conversa, o jeito descontraído de Bergoglio é compreendido por Bento XVI, que passa a adotar tática similar. Ao invés de repreender o primeiro pelas piadas – situação inicial que representa perfeitamente o perfil de cada um -, o segundo age da mesma forma, abusando do sarcasmo e até ousando contar piadas (que, segundo ele, não precisam ter graça). Eles são, sem dúvida, diferentes demais: um come refeições sozinho, o outro prefere companhia; um bebe refrigerante, o outro, vinho; um é sorridente, o outro, solidamente sério. São personalidades distintas que não poderiam deixar de recair em visões de mundo diferentes. O choque das ideias enseja reflexões filosóficas deveras interessantes: Deus (partindo da premissa óbvia de que ambos são deístas) seria dotado de imutabilidade, ou é capaz de se transformar, como os seres humanos? Mais do que isso, as pessoas mudam? O que difere fazer concessões de realmente mudar (essa questão, além de central na trama, é de uma profundidade magnífica)?
Fato é que Bergoglio via a Igreja desconectada da sociedade, acreditando na necessidade de derrubar os muros invisíveis nos quais os clérigos se isolam do povo. É por isso que ele não tem receio, como Cardeal, de se aproximar das pessoas. Ao contrário: anda de ônibus; quando tem motorista, senta no banco da frente; conversa com pessoas na rua; acompanha futebol (e não perde a oportunidade de mencionar seu time do coração). Hopkins e Pryce se encaixam como luvas cirúrgicas nos respectivos papéis, não apenas pela semelhança física, mas pelo trabalho interpretativo fenomenal. Ou seja, além da densidade de suas falas, que permitem reflexões infindáveis, eles incorporam as personas que representam. Bento XVI é conservador, não tem a mesma facilidade de sorrir e de falar com as pessoas como o carismático Bergoglio.
Importante mencionar que nenhum deles é divinizado ou demonizado. Há enfoque maior no Cardeal, pois são revelados até com razoável detalhamento fatos da sua história dos quais não se orgulha. Ele não apenas afirma que evoluiu como revela as razões que o levaram a tal. O passado de Ratzinger não é abordado de maneira direta, mas não deixa de estar lá, subliminarmente. Nessa área, a mão do diretor Fernando Meirelles é pesada na condução do longa: flashbacks da juventude do argentino aparecem com razão de aspecto reduzida e narração voice over, e o que é mais obscuro na vida de Ratzinger é ocultado por um ruído extradiegético (deixando a sutura para o espectador). O sentimento de arrependimento de ambos é sensível graças aos atores, independentemente do texto em si.
Meirelles tem uma direção perceptível, o que se revela benéfico à produção porque ajuda a evitar que ela se tornasse tediosa – é o terceiro ingrediente da receita. A montagem é acelerada, com cortes frenéticos que, se de um lado eliminam o naturalismo, de outro combinam com a acidez do discurso de ambos. O texto é argumentativo, então os argumentos são lançados da mesma forma que os planos – por vezes, curtos e grossos. A filmagem usa ferramentas das mais variadas, como zoom, câmera na mão e plano holandês. Mais uma vez, há coerência, pois isso agiliza a obra. Em termos de linguagem cinematográfica, o filme é bem eclético – caso contrário, “Bella ciao”, “Bésame mucho” e “Dancing queen” não estariam na trilha musical. Sentir a direção de Meirelles acaba sendo um efeito colateral da chacoalhada que ele dá no filme a todo momento (como quando coloca excertos jornalísticos ilustrando o momento). Se o espectador não entrar no lado filosófico-ideológico do texto, consegue se entreter com as piadas representadas por uma linguagem ágil.
“Dois papas” pode não chamar a atenção como um blockbuster qualquer, mas certamente não está aquém dos grandes sucessos do cinema. Com roteiro bem construído, direção coesa e atuações magníficas, a Netflix tem nesse um de seus melhores filmes originais. A diferença entre Bento XVI e Jorge Bergoglio acaba sendo, quem diria, divertida.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.