“DOGMAN” – O mundo acabará cego
Subverter uma estrutura narrativa clássica, mesmo não sendo novidade, é um desafio considerável para qualquer cineasta. DOGMAN foge desse padrão e convida o público a conhecer duas personagens bastante peculiares, mas não por isso surreais.
Essas duas personagens são o protagonista Marcello e o antagonista Simone: o primeiro é um homem vulnerável e aparentemente bondoso, que não consegue dizer não para o segundo, que é seu oposto perfeito. A relação entre os dois é turbulenta, mas Marcello é o único que respeita Simone sem que este recorra à força (como faz com todos os outros). Porém, a passividade do protagonista tem um limite.
A ideia do longa é deixar o espectador curioso não em relação ao sentido dos acontecimentos (se Marcello vai ou não reagir), mas quanto ao seu conteúdo (como vai reagir). Marcello Fonte faz do homônimo fictício um homem indulgente (já que é o único que trata Simone com respeito, não mera submissão pelo temor), mas não perfeito. Seu envolvimento com drogas é prova de que ele não tem um perfil heroico, o que não o impede, contudo, de ter atitudes heroicas, como ao salvar um cachorro maltratado por um comparsa do antagonista. Marcello é carinhoso com a filha e com os cachorros, mostrando-se incapaz de reagir aos abusos dos que o cercam (não consegue ao menos impedir seu cachorro de comer a sua comida, ao invés da ração). Apenas não se pode dizer que sua personalidade é marcada pela inércia porque ele, como mencionado, salva um cachorro. Em regra, todavia, acaba cedendo ainda que registre seu inconformismo – até isso mudar, é claro.
Edoardo Pesce é uma boa escolha para o papel de Simone em razão do seu porte, não pelo talento interpretativo – ele não chega aos pés de Fonte, que está ótimo. A contraposição corporal dos dois até poderia ser melhor exposta, mas é fácil perceber que um é franzino e o outro é enorme. Para Simone, um pedido é uma ordem, sob pena de ação na base da força. Truculento, não aceita respostas negativas, nem mesmo de máquinas (como quando tenta arrancar o dinheiro de volta da máquina caça-níquel). Em determinado momento, ele se torna inimigo de todos na vizinhança, não sendo bem visto sequer pela própria mãe. Evitando torná-lo unidimensional, o roteiro lhe fornece uma atitude benevolente em relação ao protagonista (na cena da casa noturna), porém sua vilania exacerbada não combina com um texto que se propõe à rebeldia.
A autoria do script é distribuída em três categorias: história (1) elaborada por Ugo Chiti, Massimo Gaudioso e Matteo Garrone (este também diretor), roteiro escrito (2) pelos mesmos três, com a colaboração (3) de Marco Perfetti, Damiano D’Innocenzo, Fabio D’Innocenzo e Giulio Troli. A despeito da tríplice divisão, o mesmo não se verifica no aspecto estrutural: o roteiro não é dividido em três atos, como geralmente ocorre nos filmes, mas em dois. O grande ponto de virada ocorre no meio da película, com clímax nos minutos finais e ideia governante apenas no desfecho (o questionamento proposto é: vale a pena rebaixar-se daquela forma?). No primeiro ato, Simone abusa de Marcello a seu bel-prazer; no segundo, após o mencionado plot point, o protagonista se torna outra pessoa e guarda surpresas para o antagonista. Com esse esqueleto, o desdobramento dos acontecimentos ocorre de maneira natural e respeita o movimento crescente que o público espera. Mesclando apresentação e desenvolvimento, a conclusão fica elastecida e mais impactante.
Mirando aumentar o impacto, a direção de Matteo Garrone não economiza na violência, nos ferimento e no sangue, ainda que não chegue a um estágio gore. O prólogo com um cachorro raivoso é anúncio do viés agressivo da obra, enquanto a filmagem com câmera que evita ficar estática corrobora essa noção. A fotografia de Nicolaj Brüel é excelente para acompanhar a película como um todo: os cenários fechados têm pouca iluminação (em especial do pet shop, que simula um local sujo, quase abandonado); são muitas as cenas noturnas, ou então, de dia, há muita chuva, céu nublado e pouca luz solar; e as cores são sempre foscas, mesmo as mais vivas. A fotografia ainda faz uma contraposição inteligente entre o contexto em que está Marcello, se atormentado ou não por Simone: prevalece uma paleta de tons terrosos quando o antagonista o acompanha (transmitindo o seu tormento); quando, porém, o protagonista está sem o seu algoz, a cor principal é o branco (como na cena do ponto de virada e no barco), simbolizando a paz que encontra na ausência deste. Uma paz que, entretanto, está distante de sintetizar o filme, cuja mensagem segue uma vertente do “olho por olho”.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.