“DIVINO AMOR” – Humanos e sua humanidade
Segundo Santo Agostinho, “a medida do amor é amar sem medida”. DIVINO AMOR transmite bem essa noção – e o quanto ela é ignorada na prática – não tanto pela narrativa, mas pelo universo diegético criado.
No filme, a protagonista Joana trabalha em um cartório e usa o seu emprego para efetivar a sua fé religiosa. Assim, ela pede, com base na sua crença na importância de o matrimônio ser mantido, para que os casais que querem se divorciar repensem esse objetivo. Na sua vida matrimonial, porém, ela começa a passar por uma crise.
O universo diegético criado pelo diretor e roteirista Gabriel Mascaro, em conjunto com os corroteiristas Rachel Ellis e Lucas Paraizo, representa um olhar apuradíssimo sobre a realidade brasileira. Considerando a trama, o filme seria um drama qualquer, não fosse a ideia de inseri-la em um futuro que faz do Brasil um país cristão. A narração voice over que inicia o longa é bastante elucidativa quanto a isso: “era [o ano de] 2027 e o Brasil tinha mudado. A festa mais importante do país não era o Carnaval, era a Festa do Amor Supremo”. O país permaneceria, nessa realidade imaginária, sendo um país laico, mas apenas na teoria – na prática, os cidadãos estariam unanimemente “esperando pela volta do messias”.
Trata-se de um Brasil em que as pessoas passam por uma espécie de detector de metais que as rotula imediatamente (estado civil, prole etc.), um país em que haveria drive thru para atendimento religioso. Unindo patriotismo e cristianismo, as raves teriam pessoas entoando músicas de louvor (estilo “eletrogospel”) enroladas na bandeira nacional – ou, então, com a bandeira nos telões, associada a Deus e a Jesus, lá escritos.
Uma primeira reflexão que a diegese leva se refere à preocupação com a indissolubilidade do casamento e com a gestação, não tanto com as pessoas envolvidas. Não há uma crítica ácida, pois não é esse o objetivo da película. A ideia é evidenciar que a religiosidade pode ocultar reflexões relevantes: para além de um casal querendo se divorciar, pode haver duas pessoas infelizes justamente em razão do casamento. Joana pode ter uma intenção bastante altruísta, contudo parece se preocupar muito mais em manter a união do que ver as duas pessoas felizes – o que justifica as atividades no grupo Divino Amor. Da mesma forma, as cadeiras especiais para as gestantes em fila de espera são um cuidado com a gestação, não com os envolvidos (se fosse uma preocupação humanista, não restringiria o benefício a esse grupo).
Além disso, a despeito de as pessoas serem devotas, Joana aprende que, por mais que se dedique aos outros, nem sempre encontrará pessoas dispostas a fazer o mesmo por ela. O objetivo é demonstrar que a religiosidade não exclui a falibilidade humana, tampouco garante a bondade individual – em uma interpretação mais ampla, os problemas enfrentados pela sociedade não são resultado das crenças pessoais, mas de como a fé individual é dirigida de maneira individualista e cega. De maneira oblíqua, o filme trata da (falta de) empatia das pessoas. Mesmo as atividades radicalmente heterodoxas do grupo Divino Amor – que não serão exemplificadas, para evitar spoilers (e esse aspecto surpreende muito no filme) – constituem um enfrentamento raso de qualquer crise matrimonial, pois não é necessariamente daquela forma retratada que os atritos do casal seriam resolvidos. Não é à toa que, salvo no caso de Joana, não se explicam as razões para os divórcios almejados – pouco importa, o que importa é que a dissolução não se concretize.
Joana é uma protagonista convincente: ela realmente quer transformar o Estado em um lugar de fé. Em seu trabalho, ela enxerga na burocracia uma ferramenta para propagar a sua crença: na sua ótica, ela tenta deixar a burocracia mais humana, ignorando que, como diz seu chefe, “não existe burocracia humanizada”. Sua leitura de mundo é reduzida às lentes do cristianismo, tanto que, quando uma pessoa que ela atende pede para falar com o superior da protagonista, ela responde que ele “não é desse mundo”. O que ela não enxerga – assim como a esmagadora maioria das pessoas que respiram a própria religião, vinte e quatro horas por dia – é que a expansão desmedida da fé, mesmo partindo de boas intenções, pode ter consequências ruins, ou, no mínimo, se revelar indesejável. Crença não se impõe.
A protagonista é interpretada por Dira Paes, que está ótima no papel. Transitando entre frustração e comoção, a atriz acha o tom certo para a personagem, que, mesmo quando está irritada, é visivelmente uma raiva contida conscientemente. A atriz teve de se expor muito para interpretar Joana, tendo em vista que Mascaro opta por um naturalismo surpreendente no longa no que se refere ao despudor – aliás, cabe o alerta: a despeito de se encaixar no gênero gospel, a produção flerta com o pornochanchada, soando vulgar e apelativo para quem interpreta apressadamente qualquer forma de nudez (mesmo a artística).
Gabriel Mascaro fornece provavelmente a melhor obra da sua iniciante carreira. O uso de cores neon é moderado (já havia em “Boi neon”) na fotografia de Diego Garcia, porém agora associado a um maior requinte técnico – por exemplo, quando Joana está desconfortável, ela é filmada de longe ou de costas, mas majoritariamente no centro do quadro; para explorar a burocracia exagerada do Estado brasileiro, a protagonista é colocada em meio a pilhas gigantescas de papéis e pastas. “Divino amor” não tem uma trama densa, mas é eficaz para criticar elegantemente a humanidade, seja nas camadas do texto, seja na estética.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.