“DISCO BOY: CHOQUE DE MUNDOS” – A interpolação de identidades
A busca por identidade é sempre interessante de se discutir pelo audiovisual. Fundamentado em imagens, a dissonância entre o objeto e o subjetivo é particularmente forte dentro do campo artístico, berço de protagonistas complexos e geralmente fraturados pelos próprios desejos e angústias. Para aqueles que se sentem como manifestações à parte, um cinema abstrato pode ser uma força de ótima propulsão. Esse é o caso de DISCO BOY, drama de guerra que cativa pela densa interpolação entre o âmago de suas duas figuras centrais.
Após uma tentativa frustrada de se mudar para a França, o bielorusso Alexsei é forçado a adentrar a Legião Estrangeira. Como novo soldado, ele entra em choque com o comportamento de Jomo, jovem nigeriano que lidera um movimento revolucionário como o seu verdadeiro propósito de vida. Quando os dois se veem forçados a lidar em lados opostos, eles começam a questionar as suas missões e aquilo que os constitui.
Dirigido pelo italiano Giacomo Abruzesse, é interessante como o filme interpola as perspectivas antagônicas. Se de um lado temos uma narrativa mais crua, cuja câmera se atenta aos dramas dos revolucionários nigerianos, e disseca a realidade ali por trás de maneira quase documental, do outro encontramos uma maior libertação artística ao acompanhar o refugiado europeu. Esse comentário não se resume a uma discrepância na qualidade entre as narrativas, mas muito pelo contrário, na valorização dessa atmosfera dual entre uma visão mais direta e outra mais contemplativa.
Isso se justifica perfeitamente na distância entre os dois protagonistas. Por um lado temos a segurança de Jomo, movido pela sua dedicação para com os próprios ideais e disposto a abrir mão até de sua existência. Em contrapartida, Alexsei vaga pelos planos como uma força de fluidez, incapaz de ser retido dentro dos limites do enquadramento.
Sons diegéticos e ecos de um passado assombrado se interpolam para sugerir esse seu deslocamento, eterno diante da impossibilidade de escapar de uma força de negação de seu próprio caráter. Ele luta por mera necessidade, incapaz de fazer daquilo a sua vida trancafiado dentro de um corpo que será pressionado a uma disciplinada amplificação militar.
Esse fator último é ainda bastante importante no longa na maneira como a dança surge na trama, associada a um reprimido sonho da parte de Jomo. Envolvido em rituais locais quando não está guerreando, o último encontra respiros nesse exercício de libertação dos movimentos. É como se as passagens “musicais” se opusessem ao aprisionamento de suas formas físicas, coletivizadas nas sequências de treinamento e erodidas diante do uso como armas.
Nesse sentido, basta ainda dizer que a discussão manifestada em um campo mais íntimo, e que tange à condução dessas duas presenças – muito bem conduzidas por Franz Rogowski e Morr Ndiyae – também se transmuta no campo geral. Existe ali uma intensa discussão sobre a dinâmica imperialista da colonização, especializada ainda hoje na destruição de identidades nacionais.
Sendo assim, tem-se em “Disco boy” um belo conto sobre o desaparecimento do homem enquanto essência. Aprisionando suas forças de oposição entre a realidade e seus instintos internos, ele articula uma interessante relação entre um amplo plano social e o interior do caráter humano.