“DINHEIRO FÁCIL” – Fácil é o filme [47 MICSP]
A expressão “dumb money” (“dinheiro burro”, em tradução livre), que dá o título original a DINHEIRO FÁCIL, designa aquele que envolve investidores individuais, isto é, pessoas que investem no mercado de ações sem a organização típica dos profissionais que ganham bilhões na Bolsa de Valores. O dinheiro deles, em contraposição, é o “smart money” (“dinheiro inteligente”). Quanto ao filme, ele não é burro, nem inteligente, é fácil.
Baseado em uma história real, o longa retrata o feito do influencer Keith Gill. Conhecido como “GatoFeroz”, ele apostou, contra os bilionários de Wall Street, no improvável crescimento das ações da modesta GameStop. A partir dele, pequenos investidores do fórum WallStreetBets, do Reddit, se organizaram e conseguiram arrancar quantias vultosas dos enormes fundos de investimento, incomodando pessoas ricas e poderosas e chamando a atenção de todos.
O papel do “Gato” é vivido por Paul Dano, em mais uma atuação muito boa, a despeito da singeleza da personagem (quando comparada a outras da sua carreira). Acostumado a interpretar homens pouco comuns (quando não esquisitos), Keith não poderia ser mais comum: um nerd com filha ainda bebê, contas a pagar e um luto para superar. Frenético, ele aparece correndo mais de uma vez e, mesmo quando chega em casa para, teoricamente, descansar, sua segunda atitude – após dar um beijo na esposa – é lavar a louça. A esposa, por sinal, coube a Shailene Woodley, cujo papel é meramente esse (a esposa do herói, nada mais), sem um arco narrativo ou camadas de personalidade. Além de Dano, quem se destaca é Sebastian Stan, não pela construção da personagem no roteiro, pois Vlad é exclusivamente instrumental, mas porque Stan lhe transmite um ar caricatural. Vlad é aquele que se acha esperto, pensa que engana a todos, como se vivesse em uma realidade paralela, e que se sente despido diante de uma situação de vulnerabilidade.
Baseado no livro de Ben Mezrich, o roteiro de Lauren Schuker Blum e Rebecca Angelo é extremamente raso e possui lacunas consideráveis. Há um grande potencial de subtexto sobre a desigualdade entre os fundos de investimento e os “traders de varejo”, contudo a ênfase da dificuldade em superá-la só consegue aparecer em um monólogo explícito de Keith, já ao final. Não apenas as personagens são rasas, mas a maneira como Wall Street funciona é exposta assim. Isso se relaciona, também, às lacunas. Por que Steve (Vincent D’Onofrio) e Ken (Nick Offerman) são desafetos? Por que Gabe (Seth Rogen) fica entre os dois? Por que Keith concluiu que a GameStop estava com as ações subvalorizadas? De onde vem a obsessão de Keith por gatos? Qual a causa da morte de Sara? A sutura pode trazer respostas através da especulação, não sendo o texto claro para fornecê-las.
Craig Gillespie tem no longa uma alternância de tom de poucas emoções mesmo na punch scene. O tom dramático está na morte de Sara, mencionada diversas vezes, sempre de maneira vazia, tornando-se até mesmo repetitivo e sem avanço dramático. Na verdade, o filme como um todo é repetitivo, não sendo entediante porque o tom cômico não o permite. Não que “Dinheiro fácil” seja uma comédia hilária, na verdade o humor é bastante tímido, funcionando com Larry Owens (graças ao talento do ator e a despeito do minúsculo tempo de tela) e em piadas esparsas. É o que ocorre também, por exemplo, quando Marcos (Anthony Ramos, limitadamente divertido) cheira o seu celular na conversa com sua mãe, quando Jenny (America Ferrera, esforçada no geral) conversa com a comissária de bordo ou quando Gabe tenta parecer humilde com um discurso meritocrata. O elenco é tão qualificado que transborda carisma de modo a suprir as limitações do filme e de seus papéis.
Em termos de linguagem, “A grande aposta” é referência clara para Gillespie, que compartilha o espírito e o tema com o longa de McKay, espelhando recursos como a montagem veloz, a gramática que simplifica o mercado de ações e o estilo de humor. Sempre, todavia, em qualidade inferior (qual a graça em todos repetirem “holy fucking shit”?). A diferença está na época: a pandemia de covid e o universo digital se fazem presentes na mise en scène, atributo que merece reconhecimento. As telas são constantes, ora de computadores e celulares, ora de sobre-enquadramento como de noticiários ou vídeos breves de pessoas comuns. São esses os elementos que impulsionam a narrativa, complementada por outros atributos visuais e sonoros sem grande destaque.
Nos cenários, os ricos aparecem em mansões e festas em piscinas, jogando tênis e acompanhando o mercado de ações com uma coleção de vinho atrás em uma sala clara e de janelas enormes, o verdadeiro oposto do grupo liderado por Keith (o Gato, inclusive, grava vídeos no porão), que graças a ele enriquece. Na trilha, o rap catapulta a trama no crescendo, porém o estilo é modificado após a ascensão do grupo, ficando o longa sem músicas marcantes. Não há grande brilho em “Dinheiro fácil”, o filme depende de seu competente elenco e do estilo de uma obra análoga. Gillespie vai pelo caminho fácil. Se quisesse ir pelo caminho da qualidade, teria feito um documentário, mais adequado ao enredo.
* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.