“DESTERRO” – A metafísica de uma ebulição
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA.
Por mais fortes que sejam algumas discussões políticas e sociais, nem sempre a sua transposição imagética é bem sucedida. A relativização de certos discursos, especialmente os que se traduzem em figuras específicas – sejam elas reais ou fictícias -, tende a ser um possível corretivo para esse processo, extremamente maleável no campo cinematográfico. Ao propor uma jornada de deriva extremamente pautada no lirismo, DESTERRO faz da apatia do desaparecimento social um interessante experimento poético.
Deslocada de seu casamento e papel como mãe, a esgotada Laura não vê mais sentido na vida que leva ao lado do marido, Israel. Perdida entre a dormência crônica de suas noites escuras e pressentimentos de uma futura tragédia, ela tenta manter as aparências até que resolve viajar para a Argentina. Mal sabe ela que a partida trará consequências incortonáveis.
Apesar da ambientação realista, que elege a monotonia cinzenta de São Paulo como o palco das angústias e supressões de seus corpos andantes, é interessante como a direção de Maria Clara Escobar gradua a construção de atmosfera onírica. Das noturnas banhadas em azul saturado à decupagem – fragmentação do roteiro nas imagens intercaladas pela montagem – pouco usual que intercala a deformação de corpos e espaços, ela reconhece a sobriedade das discussões ali em andamento, mas sem desautorizar uma câmera interessada no desenvolvimento de um isolamento metafísico.
Para além da mistura entre linhas do tempo – que acontece tanto em cenas quanto entre os blocos narrativos que estruturam o longa -, é como se os ambientes fossem se remodelando, ainda que de maneira implícita, conforme a necessidade emocional daqueles ali inseridos. As passagens na cozinha do casal, por exemplo, atentam para as paredes e enquadramentos fechados conforme as trocas se provam cada vez mais frias.
Quebras de eixo desafiam um alinhamento inicial entre personagens, e a maneira como Maria coloca Laura e Israel dentro de cena conflui conforme o afastamento dos dois se amplifica. Nesse mesmo sentido merece destaque o excelente trabalho de luz, que direciona os focos luminosos a alguns enquanto prioriza a subexposição de outros, para além do onirismo geral com o qual a fotografia é conduzida.
Existe ali um desequilíbrio latente, não importe o quão simétricos sejam algumas das composições frente às lentes. Desequilíbrio esse que atenta para a inexistência daqueles condenados, invólucros de carne que vagam pela carne sem saber o que fazer ou sentir. Essa ferramenta última revela ainda uma interessante relação do filme com a metalinguagem da arte – até que ponto tais dramas são verdadeiros, e aquelas personagens não passariam de prisioneiras de composições rebuscadas?
Cúmplices de relações fracassadas, passageiros de uma viagem rumo ao desconhecido – metáfora literalizada pelo ato de conclusão do filme, em que diversas mulheres, viajantes de um ônibus, confidenciam à câmera histórias de vida, tão únicas quanto parecidas entre si -, todos ali se escondem dentro do próprio corpo, arrancados da própria existência. Afinal de contas, esse é um projeto que se reconhece como ficção, que entende ter em Laura uma mera personagem interpretada por Carla Kinzo, inerte entre a subjetividade de seu interior turbulento e a generalidade com a qual representa, em tela, tantas outras mulheres.
Talvez a justificativa para o título esteja nessa confusão última, onde a falta de pertencimento surge da turbulência entre o concreto e a suspensão, e a condição de apátrida germina da ausência entre os limites que separam o “outro” do “si”. Desse modo, tem-se em “Desterro” uma poesia manifesto sobre o desaparecimento, a ebulição que desconfigura o pertencimento diante de imposições sociais. Em meio a uma grande diversidade de escolhas plásticas, o filme se destaca pela capacidade de nos emparelhar aos seus protagonistas, nos convencendo a navegar pelo ônibus errante por mais assustadora que seja a falta de um destino.