“DESTACAMENTO BLOOD” – Guerra não é a resposta
A palavra “blood”, em inglês, significa sangue. Em DESTACAMENTO BLOOD, sangue é algo que não falta – não o sangue banalizado na maioria dos filmes de ação, quase sem significado, mas sim um sangue de valor simbólico, justamente em momento oportuno para reforçar que BLACK LIVES MATTER (vidas negras/pretas importam).
No longa, quatro amigos negros – Paul, Otis, Eddie e Melvin -, veteranos da Guerra do Vietnã, retornam ao país para desenterrar assuntos deixados para trás envolvendo Norman, o líder do seu esquadrão. Ainda que não seja o mesmo Vietnã bélico que encararam anos atrás, os desdobramentos da Guerra, para eles e para os locais, ainda permanecem – e em proporção maior do que querem admitir.
O filme de Spike Lee é bastante fiel à sua cinebiografia ao abordar assuntos como racismo e cultura negra (ou, talvez mais especificamente, afro-americana). Em “Destacamento Blood”, a conexão dos seus temas rotineiros à matéria central do filme é bastante original. Em uma das falas, descobre-se que, na época da Guerra do Vietnã, a população negra representava onze por cento da população dos EUA, porém, de todos os soldados enviados, mais de trinta por cento era composto por negros.
Embalado por esse mote (a relação entre o Vietnã e os afro-americanos), o diretor não poupa o público de imagens chocantes e de extrema violência (como no destino dado a Eddie,) – eis o primeiro sentido do “blood” do título. Por outro lado, ele é extremamente hábil no que se propõe, transitando com facilidade entre o tocante (como quando Paul encontra Norman na floresta, com uma luz vertical bem clara, quase celestial) e a tensão (na sequência com David na mina, os sons exclusivamente diegéticos inserem o espectador). Para não dizer que é tudo trágico e pouco animador, nos créditos, as imagens contemplativas das belezas naturais do Vietnã são um alento.
Do ponto de vista da linguagem, Lee faz pequenas inserções reais na diegese – por vezes, com uma montagem um pouco agressiva -, como discursos de famosos (Ali e King, por exemplo), não raras vezes em tom ácido (associando Trump às fake news), além de associações visuais pertinentes, como a que é feita com o filme “Apocalypse now”. No último caso, o sol do Vietnã, entre o rosado e o alaranjado (similar ao que é visto no épico de Coppola), surgindo em tela cheia e simulando a abertura dos olhos do espectador, é apenas um dos meios pelos quais o diretor mexe na razão de aspecto para enriquecer a sua obra. Assim, nos flashbacks, ela fica quadrada; quando as imagens são filmadas dentro da própria diegese (uma personagem usando câmera), novamente o quadro é distorcido.
O roteiro, escrito pelo cineasta em conjunto com Danny Bilson, Paul De Meo e Kevin Willmott, pode parecer simples à primeira vista, contudo a sutileza de algumas camadas é determinante para revelar um texto bem escrito. Nesse sentido, a participação de dois artistas franceses, ainda que em papéis secundários, é uma menção simbólica inteligente sobre os antecedentes da Guerra do Vietnã (e, em ao menos um momento explícito, deixa clara uma “rixa” entre franceses e estadunidenses). Quando o guia do quarteto explica que, a despeito do fim da guerra, a inimizade entre a população do Norte e a do Sul do Vietnã ainda existe, este é apenas um dos desdobramentos da batalha histórica.
O filme tem noção de que existem feridas ainda não cicatrizadas nas personagens – e, em visão mais ampla, nas próprias populações envolvidas -, não tendo receio algum em “cutucar” as feridas. Qualquer som semelhante ao de tiros é suficiente para levar os quatro veteranos ao chão. Todos estão profundamente traumatizados, especialmente Paul, que é o mais irritadiço e de personalidade forte, o que causa atritos com os demais. Eddie (Norm Lewis) e Melvin (Isiah Whitlock Jr.) não têm grande destaque; Norman (Chadwick Boseman) tem maior função motivadora e de backstory; David (Jonathan Majors) tem um arco dramático acessório ao de Paul, que, na prática, é o principal.
A escalação de Delroy Lindo para o papel de Paul não poderia ser mais acertada: o ator já estava excelente em diálogos cáusticos (condizentes com a personagem); quando o roteiro dá a ele monólogos, o trabalho é digno de prêmios. Sua atuação pulsante faz com que o público, ao invés de encará-lo como uma espécie de antagonista, preste atenção aos motivos pelos quais ele é tão raivoso. Em uma de suas falas, ele se revolta com o comportamento do filho David, que tem “seu próprio sangue”. Mais uma vez, o sangue é elemento fundamental do discurso, que não é sempre negativo (já que o quarteto se denomina “Blood” e seus integrantes são “bloods”).
O que é triste não é o sangue derramado em uma guerra. Triste é que ainda há sangue negro derramado em guerras simbólicas, como a decorrente da perseguição de alguns policiais à população negra – o que, como se sabe, não é exclusividade dos EUA. As palavras entoadas na voz doce de Marvin Gaye, que tocam em “Destacamento Blood”, nunca foram tão atuais: “guerra não é a resposta / apenas o amor pode conquistar o ódio / você sabe, temos de achar um jeito / de trazer algum amor aqui e agora”.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.