“DESEJO DE MATAR” – Tudo mal feito
Tendo como fio condutor temático a violência urbana em Chicago, DESEJO DE MATAR tenta exumar uma franquia aparentemente morta, protagonizada por Charles Bronson em cinco filmes entre 1974 e 1994. O cadáver do fictício Paul Kersey deveria ter sido deixado como estava.
Como nos clássicos, a história se resume a uma tragédia familiar que motiva o protagonista a se tornar um justiceiro vingativo. O primeiro problema do longa reside em seu plot, que tem um viés narrativo passível de severas críticas. Ignorando as reducionistas teses políticas, o filme trata do armamento civil, em uma postura claramente favorável. A película finge oferecer os dois lados da matéria, colocando debates com os antagônicos pontos de vista relativos a ela, porém isso não passa de uma tentativa pífia de enganar o espectador ingênuo que enxerga apenas a superfície. Afinal, o protagonista não apenas é favorável ao acesso civil às armas de fogo, como as utiliza de maneira banal. Esse é o segundo problema, uma banalização chocante, como se infere a partir de uma comparação perturbadora (quando o peso de um recém-nascido é comparado ao de uma arma de fogo). Favorável ou não ao uso por civis, um revólver não pode ser tratado como algo tão trivial.
Imprescindível salientar que o inconveniente do script não é meramente se posicionar favorável à legalização do uso de armas de fogo por civis. Trata-se apenas de uma posição ideológica, algo a que a sétima arte não deve se furtar. O equívoco é a desonestidade intelectual quando verticaliza um posicionamento e simula abordar o outro, bem como a postura temerária de vulgarizar aparatos capazes de matar. Os argumentos de que “apenas os bandidos têm armas” e que “os cidadãos devem ter como se defender” são inócuos, pois não é essa a questão. O que se indaga, por exemplo, é a razão pela qual o filme não aprofunda a ideologia oposta. Isso tudo sem contar a ideia da justiça feita pelas próprias mãos, ignorando a estrutura estatal legítima, o que constitui um retrocesso histórico (a ideia da vingança privada, excluindo o Estado, é absolutamente anacrônica) e, em última análise, um possível crime (exercício arbitrário das próprias razões).
Deixando de lado a absurda conclusão do longa, o desenvolvimento de personagens é raso, quando não grosseiro. Os vilões são estereotipados (o estuprador desvairado, o minimalista preocupado e o líder racional), os policiais são os ineficazes e o protagonista é o paladino da justiça. Bruce Willis tenta imprimir em Paul Kersey dramaticidade, por exemplo ao apartar tristeza de desespero, fincando o protagonista na primeira emoção. Entretanto, a mudança da profissão de Kersey – de arquiteto (na versão original) para médico (no remake) -, além de injustificada, é ofensiva à categoria. Seria plausível um médico apenas vingativo, mas um médico justiceiro com “desejo de matar” – que assassina pessoas a sangue frio (vítimas sem relação alguma com sua tragédia pessoal) e que, ainda assim, continua exercendo a medicina – é de uma hostilidade simplesmente vil.
A direção de Eli Roth não é ruim na criação de uma atmosfera de suspense. A cena que dá origem ao “desejo de matar” do protagonista é uma versão resumida e inferior (mas não desprezível) de “O quarto do pânico”, com um razoável uso de penumbras, uma música muito sutil e a exploração de sons diegéticos, além de um coerente plano-detalhe do fogo acendendo em um fogão. De fato, a direção não vai mal no suspense, tentando ainda explorar (talvez com sensacionalismo desnecessário) o sangue resultante da violência presente no longa – embora, no momento mais radical, drible o olhar do espectador. Contudo, a montagem de uma sequência em que Kersey aprende a manusear uma arma é lamentável, exaltando ainda mais a contradição entre a medicina e o homicídio.
Comparar “Desejo de matar” com os recentes filmes hollywoodianos de ação (os bons) é uma afronta. Em “O protetor”, “Busca implacável” e “De volta ao jogo”, há de fato apenas um homem confrontando criminosos, todavia o que enfrenta é o crime organizado, por vezes internacional, situação totalmente distinta de um homem que confronta criminosos pulverizados (a rigor, uma pequena associação) responsáveis pela violência urbana. Isso sem contar que apenas Paul Kersey é um médico que começa do zero a aprender como desafiar os novos inimigos.
Inquestionavelmente, o que há de pior em “Desejo de matar” é seu roteiro preguiçoso, com uma progressão narrativa singelíssima, uma abordagem grosseira de temáticas espinhosas e um texto moldado à base de deuses ex machina (basta atentar à maneira como o protagonista consegue a primeira arma, dentre incontáveis outros exemplos). Tudo é tão mal feito nessa produção que sequer um clássico do rock (“Back in black”, AC/DC) como música-tema consegue apagar o que há de errado.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.