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“DEIXE-ME” – Rotinas e esquemas

Um estudo de personagem sob a abordagem de um melodrama. Essa é a proposta de DEIXE-ME, longa-metragem que acompanha uma mulher nas suas rotinas diárias muito bem calculadas e nos efeitos das reviravoltas sobre sua vida. Existe um interesse pela condição feminina dentro de uma existência que impõe sacrifícios, perdas e medos diante do diferente. Há também uma ideia de repetição que preenche a narrativa do início ao fim, nos seus momentos mais ou menos inspirados.

(© Imovision / Divulgação)

Todas as terças-feiras, Claudine vai a um hotel nos Alpes Suíços para se encontrar com homens que estão de passagem. Os encontros sexuais são sempre descompromissados e não passam de um dia. Enquanto isso, deixa o filho Baptiste, que sofre de paralisia cerebral, aos cuidados da vizinha Chantal. Quando Claudine conhece Michael, fica confusa se deve ou não começar um relacionamento e uma vida nova com alguém que prolonga sua estadia por ela.

O trabalho do diretor Maxime Rappaz remete a “Jeanne Dielman“. Nos dois filmes, a protagonista se coloca em um cotidiano repetitivo no qual dia após dia as mesmas atividades são feitas. Se na obra de Chantal Akerman, a repetição se dava nas tarefas domésticas, o caso aqui diz respeito às relações casuais de Claudine. Do modo como o cineasta filma tais passagens, é fácil para o espectador reconhecer cada gesto, atitude e acontecimento como parte de um ritual diário a ser conservado: a viagem de trem no mesmo assento, a busca pelo parceiro ocasional no restaurante do hotel, a relação sexual e a partida de volta para seu universo familiar. Jeanne Balibar constrói, então, uma personagem que se encontra dividida entre o distanciamento emocional perante os relacionamentos e o afeto demonstrado pelo filho. A construção meticulosa dos mesmos planos e a atuação da atriz combinam para dar vazão àquele mundo diegético.

As semelhanças com “Jeanne Dielman” também surgem quando as razões para explicar a submissão das mulheres a uma rotina cerceadora envolvem eventos não esclarecidos do passado. Em comum, as perdas sofridas em suas famílias colocaram em evidência as imposições de papeis sociais para as mulheres e as mães. Como consequência, traumas foram desencadeados e as reações foram mergulhar em uma rotina supostamente protegida e segura, que não levasse ao enfrentamento de tantos problemas e tantas dores. Na volta para casa, Claudine dá mais sinais da redoma protetora que ergueu para si e para o filho. O carinho que mostra por Baptiste carrega a complexidade de uma mãe que o superprotege a ponto de não contar a ele sobre o que realmente aconteceu com o pai. Ao invés disso, inventa viagens e cartas escritas pelo pai a partir do que conhece dos homens em seus encontros. Ao mesmo tempo que ela teme correr riscos, em virtude do que ocorreu no passado, mantém Baptiste sob seu controle por receio do que poderia acontecer com ele.

Quando Michael entra em cena e, sobretudo, não aceita sair de cena devido à partida precoce da mulher, o impacto é inegável para ela. A protagonista se sente temerosa por não saber lidar muito bem com seus sentimentos e pelas alterações no cotidiano. Narrativamente, Maxime Rappaz ilustra as reviravoltas ao encenar a passagem dos dias sem a dinâmica conhecida pelo público. As cenas não são mais as mesmas, os planos são moldados por várias lacunas, as ações não podem ser previstas e até as posições nos assentos no trem se modificam. Isso se dá pela personalidade de Michael, que se configura como uma variável inesperada e alheia aos controles da personagem. Thomas Sarbacher confere a ele uma postura espontânea e um senso de iniciativa para se aproximar do desconhecido (refletidos no trabalho com energia hidrelétrica e a paixão pela fotografia), características distantes de sua amante. As transformações começam em um universo e invadem o âmbito familiar.

Claudine se vê em um típico dilema melodramático: jogar-se em uma nova vida disposta a se aventurar por caminhos de liberdade ou permanecer na zona de conforto para evitar o imponderável. Pode-se perceber que a narrativa desestrutura os alicerces até então sólidos do primeiro ato para mostrar à protagonista o que ela pode ganhar se buscar uma relação amorosa, mesmo sendo algo imprevisível. No entanto, a encenação de Maxime Rappaz não perde o controle da decupagem e parece sair de uma fórmula para desembocar em outra. Se antes a encenação privilegiava a repetição dos momentos do cotidiano, a presença Michael faz com que as sequências precisem sempre desafiar a mulher a lidar com as eventuais mudanças de planos ainda dentro de sua visão de mundo. Falta espontaneidade nesse novo olhar para a narrativa, como se percebe no padrão estabelecido em torno do conflito entre proteger Baptiste dos riscos da vida, não viver exclusivamente cuidando do filho e dar maior liberdade a ele.

É possível também sentir que “Deixe-me” tem dificuldade de aceitar por completo o melodrama. Se a obra de Chantal Akerman trabalhava muito bem a lenta passagem do tempo como metáfora da opressão da protagonista, a lentidão do trabalho de Maxime Rappaz se confunde com a frieza emocional diante de dilemas que parecem pedir maior intensidade. E não se trata de falta de oportunidades de explorar as emoções de forma frontal, já que os momentos existem para serem trabalhados com profundidade: um encontro entre Claudine e Michael de frente para o mar, um gesto de empatia de sua vizinha com um toque no braço, a percepção de que Baptiste pode trilhar sua própria vida e as incertezas diante do que a nova vida reserva. Nessas cenas, percebem-se uma performance mais apurada de Jeanne Balibar para o distanciamento emocional e uma narrativa mais eficiente para tratar da rotina e menos da quebra de esquemas.