“CULPA E DESEJO” – Nova versão de olhar apático
“Rainha de copas” é uma produção sueco-dinamarquesa escrita e dirigida por May el-Toukhy, que foi lançada em 2019. A premissa é o relacionamento erótico entre uma mulher mais velha e seu jovem enteado após este se mudar para morar com o pai. Quatro anos depois, os direitos do longa foram comprados pelo produtor Saïd Ben Saïd e entregues para a diretora Catherine Breillat dirigir sua própria versão na França. O conflito central está presente, a dinâmica de relação proibida também, o segredo perigoso é outro ponto em comum, a trama é muito similar, mas CULPA E DESEJO não consegue dar um olhar próprio nem despertar maiores reações emocionais do público.
Anne é a advogada brilhante que cuida dos direitos de crianças e adolescentes, sobretudo quando passam por algum tipo de abuso. Ela vive com o marido Pierre e com as duas filhas adotivas. A vida da mulher muda inesperadamente no momento em que o jovem Théo, filho de um casamento anterior de Pierre, passa a morar com eles. No início, o adolescente se mostra arredio em se integrar à família. Com o tempo, ele se aproxima de Anne e os dois entram em um jogo de sedução e em uma relação erótica às escondidas. Esta situação pode ameaçar a vida familiar e a carreira da advogada.
No filme de May el-Toukhy, o breve romance entre os dois personagens principais é o impulsionador para o desenvolvimento dramático de Anne. O caso com Gustav, o trabalho como defensora de adolescentes e a interação familiar com marido e filhas são elementos de um arco narrativo centrado na contradição entre uma profissional exemplar e uma mulher com vulnerabilidades ou dúvidas. Ela se torna uma protagonista complexa ao demonstrar os anseios de quem se sente estagnada por uma rotina sem tanta liberdade e a força de quem faz o que for preciso para manter seu castelo de cartas de conforto e segurança. As maneiras como a diretora filma os espaços da casa e articula a passagem do tempo nesse relacionamento fortalecem ainda mais a evolução dramática da personagem. Então, será que a comparação seria o melhor procedimento para pensar na nova versão lançada em 2023? Em parte, o recurso pode oferecer possibilidades interessantes, em parte pode limitar as reflexões.
O ato de comparar pode ser inevitável em algumas ocasiões, especialmente quando se tratam de obras tão próximas cronologicamente. A pergunta ‘por que recontar uma história já feita anteriormente ao invés de criar algo novo?’ pode surgir. Ao mesmo tempo, a ponderação de que nada é absolutamente inédito pode ser pertinente para considerar a questão das diferentes leituras para um mesmo material artístico. Nesse sentido, se as comparações forem feitas até certo ponto, as escolhas formais específicas de Catherine Breillat podem ser um modo de se afastar do risco de repetir o que já havia sido feito. É o caso de contextualizar o universo diegético com sequências econômicas que não se prolongam por muito tempo, como o trabalho de Anne, a viagem de Pierre para buscar o filho e os primeiros atritos com Théo. Se as comparações forem deixadas de lado, a economia narrativa parece servir apenas para cumprir a obrigação de inserir tais momentos, pois a rapidez com que são apresentados prejudica a construção do universo e a resposta sensorial do espectador.
Não se trata de esperar um envolvimento emocional do público com os personagens, já que se identificar com o que se vê em tela é uma possibilidade, mas não a única. Os realizadores podem priorizar a frieza como uma sensação dominante na narrativa e no desenvolvimento dos personagens, algo que ocorre, por exemplo, em “Rainha de copas“. No entanto, “Culpa e desejo” não sai de uma inexpressividade apática que faz os eventos da trama se desenrolarem sem que haja interesse por seus efeitos e desdobramentos. A própria Catherine Breillat parece decupar cada momento de forma fria sem propor uma sensibilidade particular para o roteiro. Esta sensação se manifesta ainda mais nas figuras coadjuvantes da história. As relações entre Anne e Pierre ou com as filhas ocupam pouquíssimo tempo de tela, o que retira o valor do amor materno da trama e enfraquece a presença do marido como fator do conflito principal. A princípio, Pierre poderia ser uma parte simbólica importante do arco da protagonista (o conteúdo da conversa na cama), mas o tema do envelhecimento e as particularidades do trabalho do homem são logo esquecidos.
As comparações também podem ser feitas ou evitadas no que se refere ao desenvolvimento do romance entre Anne e Théo. Apesar de os acontecimentos da trama serem os mesmos, a abordagem não segue as mesmas características. Novamente, a economia narrativa pode sugerir um estilo direto que coloca em cena o dilema central rapidamente. Pensando especificamente no que essas escolhas geram para o filme francês, as sequências de aproximação e de envolvimento entre os dois personagens tendem a deixar essa relação impensável sem razões emocionais para nenhum deles. É até interessante analisar as diferenças entre as obras e notar que Théo tem uma postura mais ativa em comparação com Gustav para o início do caso, porém a montagem parece suprimir momentos que dariam mais espaço para a expressão das emoções de ambos. Levando em conta a versão anterior, as cenas do banho na praia, a saída para um bar e a briga em uma festa de aniversário são montadas sem tanta força dramática porque momentos propícios para as transformações dos personagens e de suas relações são subtraídos.
Em virtude da construção de sequências que parecem incompletas ou esvaziadas de poder dramático, Léa Drucker e Samuel Kircher não trabalham os arcos de seus personagens de maneira coesa. Anne não se transforma em uma figura complexa a partir de contradições, transforma-se em alguém desconexo por conta de constantes alterações sem um princípio definido. O cuidado com a família não aparece um minuto sequer para servir de motivação para manter o segredo oculto; o desejo despertado pelo jovem se mantém um mistério não por lacunas propositais que não impõem uma interpretação única, mas por vazios gerados pela falta de domínio narrativo da realizadora; e a assertividade da mulher para lidar com a revelação de seu segredo parece uma surpresa em face de alguém que jamais havia mostrado qualquer sinal dessa personalidade. Já Théo não expõe por si mesmo o que a narrativa atribui a ele por terceiros, já que não parece ser o bad boy do princípio, o adolescente conquistador na flor da juventude do segundo ato nem o jovem apaixonado do alto de sua imaturidade emocional do clímax.
Seria possível argumentar que as diferentes caracterizações de Anne e Théo indicariam os novos rumos pretendidos por Catherine Breillat para a trama de “Culpa e desejo“. A releitura fica mais evidente quando as consequências da revelação do caso seguem por outros caminhos que não repetem “Rainha de copas”. A tentativa tem um fundamento por justificar o sentido do que é um remake ou uma reimaginação da mesma história, ou seja, dar outra visão a um material já existente ao invés de refilmar exatamente como foi feito anteriormente. Entretanto, esta nova visão cria paradoxos involuntários que não são trabalhados pela cineasta, em especial as reviravoltas nas atitudes dos personagens principais que ora se aproximam, ora se distanciam. Além disso, a abordagem diferente não consegue imprimir qualquer dimensão emocional a uma narrativa que segue até o fim apática, burocrática e sem vida.
Um resultado de todos os filmes que já viu.