“CUIDANDO DA MINHA FILHA” – O paradoxo de Oh [48 MICSP]
Solidão e família podem parecer conceitos simples, porém adquirem significados distintos, a depender de quem os interpreta. No caso da protagonista de CUIDANDO DA MINHA FILHA, tais definições ganham contornos conservadores, ignorando o quão relativas as relações humanas conseguem ser. Sua visão de mundo não seria uma dificuldade de convívio com a filha se essas duas palavras não fossem tão constitutivas para a jovem.
Quando Green se encontra em dificuldades financeiras, a única opção que lhe resta – a ela e à sua companheira, Rain – é morar com sua mãe. Porém, a sra. Oh, mãe de Green, não se conforma com o relacionamento. Enquanto isso, nos seus respectivos trabalhos, a situação de ambas não é animadora: Green foi demitida por ajudar uma colega que sofreu homofobia; já a sua mãe, no asilo em que trabalha, tenta oferecer os melhores cuidados possíveis a uma idosa neurologicamente debilitada e sem familiares.
O roteiro de Lee Mi-rang, também diretora do longa, escolhe como ponto de foco uma única personagem, a sra. Oh (Oh Min-ae, ótima), negligenciando um pouco as demais. Isso, todavia, não é um problema para o filme, sobretudo pelas três camadas atribuídas à protagonista. Na primeira camada (enfatizada nos primeiros minutos), ela é uma mãe disposta a ajudar a filha (que parece se aproveitar da genitora) como demonstração do seu afeto. Na segunda, contudo, ela surge como uma mulher preconceituosa e apegada a valores tradicionais. É na terceira camada, porém, que o texto revela que, ao contrário do que pode parecer, ele não é simplista em sua abordagem da homoafetividade: não se trata de um mero tabu ou preconceito, mas consequência de uma preocupação estimulada pela própria vivência de Oh.
Em outras palavras, a protagonista não é contrária à relação homoafetiva da filha simplesmente por censura moral ou religiosa, mas por temer que ela acabe na mesma situação que a sra. Lee, a idosa de quem ela cuida. Por essa razão, Oh é uma personagem que articula duas micronarrativas protagonizadas por ela mesma: uma em sua relação com Green e Rain, outra com Lee. O que enriquece o texto é que ambas têm a empatia como pano de fundo, ainda que Oh não perceba. Green foi demitida por sentir empatia pela colega, o que é fruto da identificação com a sua situação. Por sua vez, Oh também sente empatia por Lee, mesmo que não motivada por uma identificação direta. Nos dois casos, as ações são motivadas por empatia, o que, todavia, a protagonista não consegue enxergar.
Na casa de Oh, a fotografia usa pouca iluminação e tons amadeirados, o que transmite a obscuridade do seu pensamento. No seu trabalho, diversamente, as cores são claras e a iluminação é farta. Oh entende que sua filha está na mesma situação de Lee: sem um marido e sem filhos, está sozinha. Entretanto, ela ignora uma miríade de questões, como a possibilidade de ter sido ela uma escolha consciente de Lee e, principalmente, a diferença de definições de família. Não é sem razão que a diretora faz uma rima visual bastante explícita: primeiro, no início, Oh aparece sozinha carregando sacolas e uma melancia; adiante, Green e Rain carregam sacolas e dividem o peso da melancia, o que enfatiza que não estão sós. A mãe de Green é incapaz de enxergar Rain como família tanto por razões histórico-sociais quanto pela sua experiência empírica com Lee, o que torna a questão efetivamente mais complexa. Morando em um país em que a companheira homoafetiva não tem direitos, a preocupação se torna natural. Por outro lado, Oh cria um paradoxo: ao deixar de apoiar a filha, papel que lhe caberia enquanto família, faz justamente o que não quer que ocorra com Green, que é deixá-la, ao menos parcialmente, na solidão.
* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.