“CRIANDO DION” – História de origem
CRIANDO DION, na superfície, é uma série sobre habilidades sobre-humanas e super-heróis. Mergulhando mais a fundo, é possível perceber o aspecto dramático de uma história centrada na aquisição de poderes especiais por um menino de sete anos sob os cuidados apenas de sua mãe. É justamente quando a produção articula a dimensão emocional dos personagens ao caráter fantástico da proposta que a narrativa cria diversão e empatia. Contudo, esse equilíbrio leva algum tempo até se consolidar.
A nova produção original Netflix mostra como Nicole Warren cria seu filho Dion sozinha após a misteriosa morte do marido Mark. A dificuldade natural de educar uma criança, que não fez tantos amigos em outra cidade, é intensificada quando o garoto desenvolve habilidades sobrenaturais. Para manter Dion em segurança e os poderes em segredo, ela conta com o apoio do melhor amigo do falecido esposo, Pat. Porém, mesmo com toda a proteção e cuidado, todos se veem expostos a um perigo fora da realidade comum.
O primeiro episódio logo revela a união entre duas esferas diferentes: a diversão das histórias de heróis e a emoção existente nas dinâmicas familiares e nos obstáculos da sociedade. A descoberta e o uso dos poderes criam momentos cômicos e lúdicos condizentes com o universo de uma criança: desaparecer do lugar onde se sente triste, levitar o biscoito preferido ou fazer uma manobra radical na pista de skate, além do próprio mistério construído em torno de uma tempestade sobrenatural formada por figuras fantasmagóricas e um gigante condutor de raios. Já a relação entre mãe e filho é caracterizada por uma áurea tocante, amorosa e infeliz, pois existe afeto entre eles, mas também a saudade sentida de Mark: os flashbacks indicam a importância do marido para Nicole e o peso de sua ausência, assim como as sequências na escola mostram a falta que um pai representa para uma criança solitária sem tantos amigos.
Alguns elementos técnicos também situam o enredo fantástico em uma realidade palpável que ajuda a estabelecer o contexto social e emocional dos personagens. A ambientação na periferia da cidade de Atlanta, evocando as dificuldades econômicas das famílias ali residentes, é marcada pela utilização do rap na trilha sonora e pelas pichações nas paredes de construções pouco preservadas. Tais recursos rítmicos e do design de produção desaparecem ao longo da série, desperdiçando, assim, novas oportunidades para reafirmar o tipo de ambiente onde estão os personagens. Ainda assim, os demais cenários são criados de modo a traduzir eficientemente os contrastes entre a empresa BIONA e os lugares comuns por onde Nicole e Dion transitam.
Apesar de estabelecer o conflito e a atmosfera rapidamente, a obra apresenta uma instabilidade no desenvolvimento da trama. Isso porque a narrativa passa três episódios apenas criando novas situações para mostrar o uso atrapalhado dos poderes por Dion e as consequências perigosas resultantes do risco de um garoto de sete anos ter tanta responsabilidade sobre si – uma escolha que alimenta o humor do roteiro, mas se torna repetitivo em pouco tempo. Além disso, insistir nesse único elemento também enfraquece o mistério levantado no primeiro capítulo – uma subtrama importante que fica em suspenso sem acrescentar maiores detalhes sobre o vilão e suas intenções – e os conflitos dramáticos de mãe e filho a partir da ausência de Mark, do esforço pela sobrevivência econômica da família e dos desafios da escola – as únicas inserções bem-vindas são os comentário sociais sobre o racismo e inclusão na figura da amiga cadeirante de Dion, Esperanza.
Mesmo contendo fragilidades no andamento da narrativa, a série sabe utilizar seus personagens com o objetivo de criar empatia junto aos espectadores. Especialmente no caso de Dion, a naturalidade da atuação de Ja’ Siah Young convence que aquele garoto pode ter poderes especiais, mas não deixa de ser uma criança ingênua e de sentimentos muito volúveis – as reações expressivas do ator e os comentários infantis são nítidas demonstrações de seu naturalismo. Os demais atores do elenco central encarnam suas funções narrativas cada vez mais à vontade ao longo dos episódios: Nicole é a mãe aguerrida que faz tudo pelo filho, a esposa angustiada pela partida precoce do marido, mas também é uma mulher forte que corre atrás de seus objetivos e tem seus próprios interesses (a dança) vivida com energia por Alisha Wainwright; e Pat atravessa várias mudanças de temperamento (por vezes, abruptas, por outras, carregadas nos trejeitos físicos de Jason Ritter), desde a bondade e a ternura transmitidas a Nicole e Dion, até a obsessão e o radicalismo provocados por sua transformação emocional.
No quinto episódio, o eixo, enfim, é encontrado para estabilizar a narrativa e conciliar a subtrama fantástica à porção dramática da história dos personagens. No capítulo enfocado em Mark, a trama ganha novo fôlego ao apresentar continuamente novas complicações sobrenaturais para Dion e todos ao seu redor, fazendo com que a narrativa não se restrinja a apenas mostrar o uso descontrolado dos poderes e se move em direção a um clímax claro (inclusive, episódio habilidoso em fazer transições temporais entre passado e presente). Pode não ser um enredo original (há a empresa de interesses obscuros, o evento misterioso que disseminou os poderes, a ameaça de alcance global e a reviravolta feita para surpreender), mas encontra o ponto crucial que articula a dimensão heroica do plot à evolução dramática de sujeitos desafiados a enfrentar suas próprias dificuldades de vida.
“Criando Dion” não é constante dentro de sua própria proposta de integrar o fantástico ao emocional, tendo oscilações nos primeiros episódios até alcançar a estabilidade narrativa necessária. Ainda assim, quando a alcança ainda há tempo para oferecer uma experiência divertida e tocante que faz o espectador se interessar pelos rumos dos personagens. Acima de tudo, se interessar pela precoce origem de um super-herói frente a ameaças de grande escala e de um menino frente às complicações da vida.
Um resultado de todos os filmes que já viu.