“CORINGA: DELÍRIO A DOIS” – Colagem sem alma
É notório que CORINGA: DELÍRIO A DOIS é um filme desnecessário. O final de “Coringa” é suficiente e adequado para a trama proposta, não tendo sido sequer cogitada uma continuação. Nesse sentido, “Delírio a dois” é uma sequência caça-níquel. Seu maior defeito, porém, não é esse. Como um apêndice do anterior e moldado principalmente a partir de colagens do que é hors concours, falta-lhe o que é mais essencial em qualquer obra de arte.
O momento de Arthur Fleck ser julgado por seus crimes se aproxima. Enquanto está encarcerado, porém, ele conhece Harley Quinn, por quem se apaixona e que faz com que volte a acreditar no potencial da sua outra persona, o Coringa. Entre devaneios e infrações, o mundo é para eles apenas um palco.
O encaminhamento dado a “Delírio a dois” é distinto do norte do primeiro filme. O roteiro escrito por Scott Silver junto ao diretor Todd Phillips se depara com um vácuo no qual a trama não consegue ser costurada pelo enredo, tampouco pelas personagens, tornando-se lenta e dependente dos números musicais. O plot tem a sua função de pontapé inicial e à Arlequina cabe o papel de incidente incitante, mas nada disso oculta o grande vazio do roteiro.
O script conta com duas ideias principais: o sistema e a fragmentação. Na parte do cárcere, há uma crítica à violência e à brutalidade policial (o sistema), porém nem mesmo as cenas mais impactantes (como a que Ricky é atacado, em que a imagem corresponde a um close no Coringa, enquanto o som, ao ataque) reverberam como poderiam (no exemplo dado, a repercussão é nula). O não aprofundamento é tamanho que a defesa de Arthur não é problematizada, o que também poderia ensejar uma crítica ao sistema.
Por outro lado, na parte da fragmentação há maior esmero; ela está no curta que antecede o filme, na ideia da dupla principal de viverem em um palco intermitente e, sobretudo, nas músicas (é inclusive expressado que servem “para equilibrar as fraturas dentro de nós mesmos”). A montagem auxilia na sensação de palco, como quando, na transição do curta animado para o longa, é usado wipe em formato de cortina, ou quando Arthur é entrevistado, havendo alternância entre a imagem granulada e de razão de aspecto reduzida da gravação, de um lado, e a imagem da diegese, de outro.
O fato de o longa ser um musical, evidentemente, não é demérito algum. O que é contestável, porém, é o fato de usar canções consagradas para facilitar a aceitação do gênero. É o caso do emprego farto do repertório de Frank Sinatra – por exemplo, “That’s life”, “I’ve got the world on a string”, “For once in my life”, “Bewitched” e “If you go away” – e de Louis Armstrong – por exemplo, “Oh when the saints go marching in” e “When you’re smiling (the whole world smiles with you” -, além de composições reconhecidas como “What the world needs now is love” (Jackie DeShannon), “Will the circle be unbroken”, “To love somebody” (Bee Gees), “(They long to be) Close to you” (Carpenters) e “My life”. Com essas escolhas, fazer um musical se torna muito mais fácil. É verdade que há cenas que conseguem ser grandiosas, como as de “For once in my life” (com um Coringa magnético e um crescendo sufocante) e de “To love somebody” (o cenário e o figurino funcionam como um túnel do tempo, em especial a calça “boca de sino”), além de dialogar muito bem com a narrativa. Entretanto, é inegável a queda quando são usadas canções originais: com “The Joker”, o desempenho da dupla é estonteante, já a música, sonolenta; com “Gonna build a mountain”, a estética é deslumbrante, a composição, decepcionante (sem olvidar da nulidade simbólica que é o “construir uma montanha” a que se referem).
A atuação de Joaquin Phoenix no papel principal é mais uma vez esplendorosa, com uma fisicalidade impressionante (a linguagem corporal, o corpo magérrimo…) e um trabalho de voz admirável (o timbre agudo e a tremulação das entrevistas no início em nada se assemelham à firmeza e o tom grave no tribunal), sobretudo considerando a timidez do roteiro em explorar seu backstory (se o fizesse, fatalmente o resultado seria muito mais sombrio). Lady Gaga tem em Lee uma personagem com menor espaço, mas muita relevância. Sem roubar a cena, a atuação de Gaga serve de trampolim para que Phoenix faça Arthur mergulhar nos delírios proporcionados pelo Coringa.
Tecnicamente impecável, “Coringa: delírio a dois” é preenchido por referências que vão de clássicos da Warner, como Looney Tunes, a dispensáveis Easter eggs do universo do Batman (Harvey Dent, Arkham etc.). Há inúmeras citações a musicais clássicos; “A roda da fortuna” é a mais clara por aparecer explicitamente, mas há menções indiretas a, por exemplo, “Os guarda-chuvas do amor” (cena em que os cinzentos guarda-chuvas ganham cores no enquadramento vertical) e “Amor, sublime amor” (cena em que cantam com a luz da lua ao fundo). A falha do longa é se amparar demasiadamente no que já foi exaltado outrora (principalmente na trilha musical) e apresentar algo ínfimo de realmente original. Não se trata de uma homenagem aos musicais, mas de pura falta de criatividade. Com isso, o resultado é um filme sem alma e completamente desinteressante.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.