“CONTO DE FADAS” – Olhar para o passado esboçando o futuro [46 MICSP]
Como costuma em seus trabalhos, Sokurov se debruça sobre a História em CONTO DE FADAS. Mais uma vez, o cineasta emprega recursos técnicos para enriquecer a obra. Dessa vez, porém, a técnica é um esboço do provável futuro do cinema para um filme que, ironicamente, olha para o passado.
O filme imagina o que aconteceria se figuras históricas que determinaram o curso da humanidade se encontrassem. Qual seria o conteúdo de uma conversa entre Churchill, Stalin e Hitler, dentre outros? Como seria o purgatório no qual se encontrariam?
A filmografia de Aleksandr Sokurov é marcada por olhar para a História, fazendo-o inclusive com notória reverência. Em “Conto de fadas” ele repete o ponto de partida da sua obra-prima, “Arca russa”: uma revisitação de eventos ou pessoas a partir de uma perspectiva onírica. Ou seja, da forma como apresentada, essa revisitação não ocorreu nem seria possível de ocorrer, mas ela simboliza um experimento que injeta imaginação em fatos consumados. No caso do filme de 2002, a metodologia empregada é sobretudo a filmagem em plano-sequência, que simula a sensação, para o espectador, de uma ininterrupta viagem de navio (por isso a ideia de arca); já o de 2022 aposta mais no design de produção para conduzir o público em uma viagem similar (além disso, agora as personagens são relevantes para a humanidade, não somente na Rússia), bem como no emprego de tecnologia deepfake.
Cada vez mais esse tipo de tecnologia vem sendo utilizada nos filmes, sendo vantajosa por permitir o rejuvenescimento do elenco ou o aparecimento de artistas já falecidos. Sokurov usa o deepfake para colocar Churchill, Stalin, Hitler e Mussolini, dentre outros com menor tempo de tela, dialogando no purgatório. Na prática, portanto, o olhar de contentamento do britânico (como na cena do portão) é real, assim como o inconformismo do alemão ao declarar estar “cercado por idiotas”, e assim por diante.
Conforme o filme progride, as conversas daqueles homens, apesar de aleatórias – porquanto não há propriamente uma narrativa que os conduza -, dão maior concretude às suas personalidades. Enquanto Churchill se vangloria diversas vezes das suas vitórias em batalhas, Napoleão zomba de Hitler porque, ao contrário dele, conseguiu conquistar Moscou. O anacronismo não é relevante: é evidente que Napoleão não leu nada escrito por Lênin, mas o que importa é a sua busca em se exibir como culto e superior aos demais. Se não existe um fio condutor comum firme, em termos narrativos, entre as personagens, o que elas compartilham é essa necessidade de exibição, pavoneando-se como se estivessem no paraíso.
Todos eles fazem questão de demonstrar patriotismo (Hitler enfatiza que o que se ouve é Schubert e Wagner), o que aparece também nos recortes de seus discursos reais (Mussolini afirma ser necessário “fuzilar os políticos para salvar a nação”). Apesar de algumas daquelas figuras serem verdadeiramente atrozes, o humor de Sokurov, que zomba até mesmo de si, tem uma puerícia que torna o filme mais leve, como quando Stalin diz que o local é belo, “mas o Kremlin é mais” ou quando citam Cervantes. São diversas, inclusive, as referências aproveitadas na película, que vão da Música à Filosofia, da Literatura ao Cinema. A fotografia em preto e branco, em um cenário assustador, a aproxima do expressionismo alemão, havendo igualmente um elo com o movimento expressionista nos rostos anônimos similares ao da pintura “O grito”, de Edvard Munch.
O que a animação faz parece ser miragens intercaladas com neblinas que, ao desaparecer, tornam o local mais fúnebre. As personagens transitam entre alguns dos nove círculos do inferno, com visuais dantescos de floresta, ponte, muros etc. Quando aparece um grupo grande de pessoas, elas se movimentam em conjunto, como ondas, representando as massas manipuladas por aqueles homens. Eventualmente, as ondas crescem em um fundo rubro, um dos momentos em que o volume do design de som também se eleva. Os ruídos intradiegéticos, quando em alto volume, são impactantes para ampliar a sensação de angústia e sofrimento daquele local.
Artisticamente rico e plural em suas referências, “Conto de fadas” consegue ser engraçado mesmo de modo acidental (considerando o lançamento do filme no ano do falecimento da Rainha Elizabeth, as ligações de Churchill são ressignificadas), mas nem por isso perde a sua perspicácia imaginativa. A obra olha muito para o passado, mas a animação é de uma tecnologia que ainda será muito aproveitada no futuro. Sabiamente, Sokurov sempre soube que o futuro não é nada sem o passado.
* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.