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“CÓDIGO PRETO” – Ser ou não ser monogâmico

Sob o pretexto de um thriller de espionagem, CÓDIGO PRETO é, na verdade, um drama conjugal psicológico que questiona a monogamia. Os estilos podem parecer muito distintos, mas, na verdade, sob o véu do primeiro subgênero encontra-se o segundo, sugerindo que a diferença entre eles não é tão grande quanto parece.

George é um agente de espionagem a quem é atribuída uma árdua tarefa, consistente em descobrir quem, entre cinco funcionários, é o traidor da agência. O trabalho se revela ainda mais difícil quando ele descobre que Kathryn, sua esposa, é uma das suspeitas.

(© Universal / Divulgação)

Não é à toa que são cinco suspeitos, pois são dois casais e a esposa do protagonista. À primeira vista, “Código preto” é um filme de espionagem – ou, mais precisamente, contraespionagem -, porém a escolha de uma dinâmica envolvendo três casais é indicativo de que a relação conjugal de cada um deles é ainda mais relevante que a natureza de seu ofício. Isso é reforçado pelo ritmo que Steven Soderbergh atribui à trama, uma vez que o verborrágico roteiro (o que é comum na filmografia do cineasta) de David Koepp não é dotado de muita ação.

Ao revés, o filme se passa em poucos cenários (essencialmente, a residência do casal principal, seu local de trabalho e um lago) e depende muito dos ótimos diálogos travados entre as personagens. Neles, Koepp injeta altas doses de hostilidade, como na cena do jantar e nas sessões de terapia, bem como de sarcasmo, como quando George é questionado se está “pronto para uma traição”. Nessa última cena, destaca-se o subtexto sexual inerente à trama, que nem sempre é verbalizado, mas está com presença constante, sobretudo com um viés voyeurista (por exemplo, quando George observa Kathryn no quarto).

O voyeurismo se associa ao que há de mais interessante no longa, que é a permanente sensação de desconfiança. Esse sentimento dialoga com o thriller e com o drama psicológico e serve de vetor para as personagens e para o próprio espectador. O roteiro parte de um Macguffin e usa artifícios como red herrings e foreshadowings para confundir o público e estimular o clima de dúvida sobre tudo e sobre todos. Há, porém, um excesso de complexidade que polui a narrativa, que se torna desnecessariamente intrincada com o propósito de causar embaraço. Na prática, isso indica que falta ao longa substância para um desenvolvimento mais robusto, o que é corroborado pela curta duração.

No caso das personagens, elas sabem que são, sem exceção, pessoas cuja profissão exige mentir (e convencer na mentira), e sua mútua suspeita é elevada à medida que a trama avança (como quando os atos passam a ser extraoficiais). A monogamia é colocada em xeque desde o início, quando uma personagem confessa que, para eles (espiões), trair é fácil demais. Com um espectador desconfiado, o pacto de cooperação entre George e Kathryn é objeto de dúvida, o que se torna ainda mais questionável a partir da atuação enigmática de Cate Blanchett, cujas reais intenções são propositalmente ocultas. Já a proposta de Michael Fassbender para o papel George é um pouco diferente, pois a personagem é um espião perfeccionista e paciente, o que se revela pelo seu comportamento comum (ao trocar de roupa no jantar, por exemplo) e no seu hobby (a pescaria serve também como metáfora para o seu trabalho). O desempenho de Fassbender não é ruim, mas não cativa nem destoa muito do apresentado em “O assassino“.

Os quatro coadjuvantes (Tom Burke, Marisa Abela, Regé-Jean Page e Naomie Harris), quase sempre em interpretações frias, exercem funções narrativas, mas não têm desenvolvimento enquanto personagens autônomas. Pouco se sabe sobre cada um, o que também ocorre com o casal principal, com a diferença que os atos de George e Kathryn estão no centro das atenções. O quarteto evita que a trama fique plenamente clara, o que, inclusive, combina com a fotografia, que, mesmo nas cenas diurnas, se aproveita da contraluz para reduzir a visibilidade. Sob a ótica deles, são ampliadas as dúvidas sobre a viabilidade da monogamia. O filme flerta com um “confiar desconfiando” como resposta inicial, mas entende que, na verdade, o grau de sigilo para uma resposta efetiva é o de um “código preto”.