“COBRA KAI” [1ª E 2ª TEMPORADAS] – Clássicos conflitos em novos tempos
Retomar um marcante filme da década de 1980 para transformá-lo em série poderia ser uma ideia arriscada. No passado, continuações foram feitas sem o mesmo brilho de “Karatê Kid” de 1984. Portanto, não seria improvável cogitar que COBRA KAI pudesse apenas mexer com a nostalgia ou distorcer um universo já estabelecido. Reconhecendo tais riscos, a produção iniciada no YouTube em 2018 e adquirida pela Netflix em 2020 encontra uma perspectiva fascinante para levar a clássica história para os dias atuais.
O foco dramático segue sendo as disputas entre Daniel Larusso e Johnny Lawrence, mesmo após já terem se enfrentado no torneio de caratê de All Valley com a vitória do primeiro. Trinta anos depois, a rivalidade entre os dois ressurge quando Lawrence decide se reerguer reabrindo o antigo dojo Cobra Kai. Enquanto ele busca redenção, Daniel tenta impedir que o Método do Punho afete mais adolescentes sem a ajuda do Sr. Miyagi. Além desses personagens, retornam também as questões sobre bullying, equilíbrio da vida sem violência e conflitos entre pais e filhos.
No primeiro episódio, os criadores John Hurwitz, Josh Heald e Hayden Schlossberg já estabelecem que o resgate da história dos anos 1980 na atualidade passa por transformações. A partir das imagens do torneio trinta anos atrás, revemos a vitória de Larusso, porém, ao invés da sua celebração, a câmera se desvia lateralmente para mostrar Johnny caído no tatame e, graças a um raccord, avançar no tempo até enfocar o mesmo homem agora envelhecido e decadente em sua cama. Assim, a narrativa assume o olhar dele como protagonista e descreve uma vida tumultuada: bêbado, vivendo em um condomínio precário, trabalhando em um emprego que odeia e sofrendo com a péssima relação com o filho Robby. Quando ele reorganiza seu antigo dojo sendo o Sensei, passa também por mudanças: repensa os valores truculentos saídos da máxima “sem compaixão” e se converte em uma figura paterna para Miguel.
Com o decorrer dos capítulos, Daniel Larusso igualmente ocupa papel de destaque passando por transformações. Ele formou uma família com a esposa Amanda e os filhos Sam e Anthony, além de ter aberto uma concessionária de carros que cria sua publicidade com referências ao universo das artes marciais. Em geral, suas relações afetivas são o oposto das do adversário, já que tem um casamento estável, uma convivência baseada na confiança com a filha e uma imagem positiva junto a Robby como a figura paterna que este nunca havia tido (ao se tornar seu Sensei e reabrir o Miyagi-Do). Porém, embarca em uma jornada que afeta todos ao seu redor: tenta impedir o ressurgimento do Cobra Kai e de seu comandante por não acreditar na possibilidade de ver seu rival deixar de ser o bully valentão e se tornar uma pessoa tolerante e amigável.
À medida que as duas temporada se desenvolvem, podemos sentir que impactos do passado atingem o presente especialmente porque antigas feridas não cicatrizaram. O fato de Lawrence e Larusso não conviverem bem (ressentimentos pela derrota no campeonato e pelas humilhações no colégio, respectivamente) se reflete nas interações entre Miguel, Sam e Robby, quando formam um triângulo amoroso ou quando mudam bruscamente seus estados emocionais. Em paralelo, a questão do bullying assume espectros diversos e interessantes, sempre relacionados às consequências dos problemas dos mais velhos sobre os jovens: hoje as ofensas se aproveitam do anonimato das novas tecnologias, mas também vêm das más influências que ensinamentos como “vença a qualquer custo e sem compaixão para ser sempre um vencedor” proporcionam – assim, Eli atravessa percursos extremos de alvo e algoz no bullying.
Não são apenas os personagens que lidam com o que já aconteceu, pois a narrativa faz o mesmo ao evocar a nostalgia do passado. Há uma sensação calorosa de reconhecer figuras e situações familiares, além da ressignificação de assistir ao golpe da garça agora como uma provocação e ao esfregar de mãos do Sr. Miyagi para amenizar uma lesão, agora feito por Daniel com efeitos cômicos. Os próprios flashbacks ultrapassam a simples referência para serem recursos multifacetados, que retornam como momentos prazerosos em meio a cenários angustiantes – Lawrence é atormentado pela lembrança do padrasto e do Sensei Kreese enquanto aprecia as memórias da antiga namorada e dos amigos, já Daniel sofre com as recordações das intimidações enquanto se conforta com as lições aprendidas com o Sr. Miyagi.
Em outros elementos estéticos, a série fortalece o descompasso criado por conflitos passados que transbordam no presente. A partir dessa ideia central, podemos entender como os dois tempos se chocam (é uma luta que não se concretiza ou um discurso de treinamento que é confrontado pelas pautas de identidade de gênero), simbolizados pelos cortes abruptos entre uma cena e outra. Algo semelhante também ocorre nos paralelismos visuais e temáticos construídos nas sequências de treinamento não convencional nos dois dojos, de forma sutil através da semelhança das ações dos personagens ou de modo mais explícito através da técnica do split screen. Acima de tudo, a narrativa tem uma atmosfera que remete à década de 1980 e uma dinâmica peculiar de produções contemporâneas.
Se levarmos ao pé da letra, “Cobra Kai” pode não ser perfeito. O último episódio da segunda temporada, por exemplo, possui diálogos expositivos e um ritmo excessivamente acelerado na condução dos conflitos. Entretanto, esse mesmo capítulo oferece momentos e soluções tão fascinantes que equívocos são minimizados, como é o caso da escala absurdamente crescente das lutas ocorridas na escola e filmadas com longos planos fluidos. Desse modo, a obra marca seu lugar ao saber continuar a história original com a rivalidade de Johnny Lawrence e Daniel Larusso e seus trágicos efeitos em um tempo novo com novas vidas e personagens. E se o peso dramático é tão bem-sucedido no desfecho da temporada, o mérito está em trabalhar com inteligência a emoção de reencontrar um universo tão convidativo.
Um resultado de todos os filmes que já viu.