CICATRIZES – A imensidão de um amor [43 MICSP]
No mundo inteiro, pais e mães se separam de seus filhos por diversas razões – por vezes, elas são obscuras (leia-se, criminosas) e não encontram solução. De acordo com CICATRIZES, porém, a esperança de reencontrar um filho não morre jamais.
Trata-se da história de Ana, uma mãe que nunca perdeu a esperança de reencontrar seu filho, dado como morto após o parto. Incrédula e persistente, seu objetivo é ver o corpo, o que lhe foi negado, se realmente o bebê morreu, ou encontrar o jovem, que agora teria cerca de vinte anos.
Snezana Bogdanovic entende perfeitamente a obsessão de Ana: todos sabem seu desespero, todos conhecem o seu drama, não sendo necessário exaltar-se ou expor fraqueza (maior do que a óbvia). Por isso, a atriz fornece uma interpretação minimalista, no viés da conhecida “cara de paisagem”. Seu silêncio, porém, diz tudo. Quando seu marido briga com ela ao saber que ela retornou ao hospital tirando satisfações, ela não o encara de frente e não fala absolutamente nada. E não precisa dizer mesmo, pois seus atos têm uma coerência tão grande que ela se torna, de certo modo, previsível. Ana não dorme, passa muito tempo olhando pela janela, se esquece de costurar a saia da filha e encara meninos que encontra na rua imaginando que algum deles poderia ser seu.
Nada disso significa que seu marido não tenha esperança. A diferença entre eles é que ele segue com a própria vida, preferindo não sofrer. Ambos têm a mesma cicatriz, mas são cicatrizes distintas, já que a dele se curou com maior facilidade, enquanto a dela ainda dói muito. Em síntese, ele é mais racional, mas não deixa de ser afetuoso com ela (afeto exemplificado na cena em que ele coloca as mãos em cima das dela).
O roteiro de Elma Tataragic tem por base um enredo potente e tocante, surpreendenddo pela habilidade de envolver o espectador com poucos diálogos. Parcela do êxito da esplendorosa punch scene reside na atuação dos envolvidos, contudo o teor das falas é fenomenal. Mesmo que o texto tenha um objeto específico, seu conteúdo, de maneira ampla, é a tradução da forma mais limpa de amor, o amor que liberta, que busca a felicidade da pessoa amada.
Entretanto, o script apresenta algumas falhas pontuais um pouco incômodas. O desfecho é divisivo, tendo em vista que pode ser interpretado de maneira simbólica (no que se refere à ligação espiritual entre mãe e filho) ou literal. No segundo caso, a hermenêutica recai em um exagero que praticamente afasta essa interpretação. Além disso, a subtrama da filha tem um desenvolvimento preguiçoso (no que tange ao namorado), soando como um artifício para facilitar o acesso de Ana ao computador de Ivana (se esta se tranca no banheiro para falar com o namorado, aquela consegue usar o aparelho na sua ausência). A menina funciona melhor no conflito com a mãe, desperdiçando o plot a oportunidade de abordar mais o atrito entre elas (e a mágoa da filha pela ausência da genitora). Ainda nos problemas do roteiro, incomoda a participação de uma mesma personagem, em duas cenas em que Ana está sozinha, soando como uma pista falsa.
O diretor Miroslav Terzic é bastante feliz ao aproveitar as poucas falas do roteiro e expor imageticamente o mundo comum da protagonista. No café da manhã da família, Ana permanece em silêncio, certamente distante em pensamento. O pai é falante, tenta interagir; a filha mexe muito no celular. O primeiro sorriso de Ana demora a aparecer, o que ocorre apenas ao ver meninos jogando futebol. Com uma direção tão elucidativa, o diretor sérvio não precisou acrescentar músicas para manipular a emoção do espectador. É fácil se comover com tamanho sofrimento.
Nesse sentido, o uso de câmera subjetiva auxilia na identificação cinematográfica subjetiva, como na cena em que Ana olha atentamente um rapaz desconhecido no ônibus – atitude que é reflexo da sua ânsia em encontrar o filho. Mais adiante, quando Olivera, irmã da protagonista, assiste quase que escondida a uma mulher abordando-a, o ponto de vista sai desta e vai para aquela, indicando desconfiança. Embora a película seja quase inteira a partir do ponto de vista dela, em alguns momentos-chave, ele é mudado (inclusive ao final, o que é enriquecedor na medida em que permite ver lados diferentes da mesma trama, estimulando a reflexão). Sem exagero poético, a cena de subjetividade mental em que Ana está sentada em um chafariz é de uma ternura sem igual.
“Cicatrizes” é um filme que exige empatia do espectador. Caso contrário, a compreensão do raciocínio de Ana fica prejudicada. O que pode parecer uma vã esperança ou uma obsessão desmedida, a depender da interpretação, pode significar a imensidão de um amor.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.