“CHICAGO” – As narrativas, as efemeridades e as manipulações
“Pop, six, squish, uh-uh, Cicero, Lipschitz”: essa sequência icônica de palavras aparentemente sem nexo compõe “Cell block tango”, uma das canções do musical CHICAGO. De técnica impecável e sequências inesquecíveis (como a mencionada), o filme consegue retratar com humor ácido as efemeridades da manipuladora indústria do entretenimento a partir da criminalidade da Chicago dos anos 1920.
Roxie Hart quer ser famosa a qualquer custo. Na noite em que ela assiste à apresentação de Velma Kelly, uma estrela que ela admira, Velma é presa. Ambas descobrem que a vida no crime permite a fama, que, todavia, não dura muito tempo. Enquanto isso, o preço da liberdade é Billy Flynn, um esperto – e caro – advogado.
O trabalho de direção de Rob Marshall é impressionante. Possivelmente “Cell block tango” (em tradução livre, “tango das presidiárias”) seja o ato de execução mais primorosa da obra, que, não obstante, é fenomenal em termos de coreografia. Catherine Zeta-Jones é quem tem as danças de mais difícil execução, fazendo de Velma Kelly uma assassina que canta bem e dança maravilhosamente. Seu “act of desperation” (“ato de desespero”) demanda muita energia e sapateado intenso, porém é apenas um exemplo da excelente atuação de Zeta-Jones. Velma domina o palco como ninguém (mesmo após o crime, se apresenta sozinha), o que a torna famosa, fama aumentada pelo crime, mas também arrogante (tratando mal Roxie no começo) e orgulhosa (afirmando para Mama que “nem morta” se disporia a bajular a novata). Contudo, ela acaba recorrendo a Roxie por duas vezes – na segunda, o motivo é mostrado por um pequeno detalhe, um rasgo em suas meias.
A loira, por sua vez, é uma sonhadora claramente dissimulada. Em princípio, não fica claro o quanto de sentimento ela nutre por Fred (Dominic West) – se há sentimento, se é algo carnal etc. -, mas o que fica claro é que tornar-se uma estrela é prioridade (é bastante simbólico, inclusive, que ela queira que ele a chame assim durante o sexo). Se Fred não pode ajudar, torna-se descartável (e é descartado porque, além disso, a iludiu). O mesmo vale para Amos (John C. Reilly), que é usado por ela quando conveniente. A ideia é reflexo tanto da efemeridade das relações, que podem ser rompidas tragicamente como se o elo fosse frágil (e de fato era, tanto dela com relação aos dois, quanto de Velma em relação à irmã e ao marido), quanto da manipulação das pessoas e das próprias instituições (é de se notar que ninguém se arrepende de nada). Renée Zellweger tem em Roxie um papel formidável, convencendo como uma mulher cínica movida cegamente pelo que deseja.
Não existem pessoas boas em “Chicago” – no máximo, o ingênuo (para dizer o mínimo) Amos. Lucy Liu faz uma rápida aparição como mais uma mulher criminosa – ou melhor, assassina, pois “foi um assassinato, mas não um crime”. O grande exemplo é Billy (Richard Gere), cujo discurso é de se importar somente com o amor, devendo a palavra “amor” ser interpretada como “dinheiro”. Velma tem razão ao afirmar que o primeiro cliente de Billy é ele mesmo; de certa forma, ele gosta de ser o centro das atenções porque é assim que controla todos ao seu redor. Na genial cena em que ele canta “We both reached for the gun”, ele demonstra o conhecimento da importância da narrativa e da suscetibilidade da imprensa a esta. A partir do momento em que ele cria uma história sobre os fatos, ainda que falsa, ele precisa vender, tornando tudo uma encenação. Da primeira vez, são todos marionetes: ele é um ventríloquo e Roxie é a sua boneca (o desempenho corporal de Zellweger é incrível), porém os jornalistas também são suas marionetes, pois é ele quem controla as suas cordas. Mais tarde, tudo é um circo para ele.
Para criar tantos cenários, a esplendorosa direção de arte é bastante exigida: o ferro das celas está corroído; a maquiagem dos bonecos de Billy faz com que os atores realmente pareçam bonecos. São inúmeros os exemplos da estética encantadora do longa, como os figurinos de paetês de quando Roxie se apresenta (estilo comum na Broadway), o uso intenso da cor vermelha (simbolizando os crimes e a atmosfera de sedução) e a diferença das roupas de Roxie e Velma – a primeira, com cores mais claras e brilhantes; a segunda, geralmente de preto e expondo bastante o corpo. Na Chicago dos anos 1920, as mulheres do mundo do entretenimento precisavam seduzir, como ocorre também com Mama Morton (Queen Latifah) em seu ato.
Assim como “Dançando no escuro”, “Chicago” explora as cenas de musical, no mais das vezes, em subjetividade mental. Mama não está cantando e dançando, está discursando para as detentas. Roxie não está em cima do piano, contudo o que ela canta tem bastante poder narrativo sobre o que ela pensa de Amos. De um lado, as canções são eloquentes; de outro, a montagem paralela é extremamente eficaz para manter o ritmo de musical sem perder o foco no que realmente está acontecendo. Para além das atuações e da estética, a montagem também é destaque positivo, sem perder a organicidade (por exemplo, na elipse entre a apresentação de Velma e o crime de Roxie, que só se nota que há uma elipse quando esta se refere à noite em que aquela foi presa).
O humor de “Chicago” é ácido, até mesmo na apresentação final, que faz piada com a criminalidade. Na verdade, o crime é satirizado, como quando o noticiário diz que Roxie substituiu Al Capone no coração dos cidadãos. O texto de Bill Condon tem a inteligência de apontar, de um lado, o quão efêmera é a fama (e não só ela) e, de outro, o quão fácil é manipular o que for necessário. Tudo ocorre por narrativas, pois uma nova narrativa substitui a anterior (efemeridade) e influencia as instituições e o público (manipulação).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.