“CARNÍVORAS” [FVCF/2018] – Um filme que custa a acontecer
Jérémie Renier trabalha como diretor em CARNÍVORAS ao lado de seu irmão Yannick Renier. A dupla conta a história das irmãs Mona e Sam: aquela tenta ser atriz, mas não consegue nenhum papel, enquanto esta é bem sucedida na carreira e na família com seu marido e filho. Quando Mona precisa morar com Sam, a cobiça por um tipo de vida que tanto desejava passa a atormentá-la. Trata-se de uma premissa interessante, apresentada com muita eficiência, porém desenvolvida com percalços que comprometem o resultado final e a ideia original.
A força do filme se encontra nos contrastes entre as duas irmãs, tanto em termos de personalidade quanto em termos de desdobramentos em suas vidas. As caracterizações das personagens e as performances das atrizes fortalecem o encontro conflituoso entre elas: Sam é extrovertida, expansiva, aparentemente bem resolvida no trabalho e na família e uma atriz famosa com atuações instintivas, não muito preocupada em seguir roteiros; Mona é introvertida, solitária e uma atriz disciplinada e extremamente técnica em sua profissão, apesar de acumular testes malsucedidos nos quais não obteve papéis importantes. Leila Bekhti, vivendo Mona, e Zita Hanrot, vivendo Sam, conseguem transmitir essas características em poucas sequências.
A partir do momento em que Mona precisa morar com Sam por motivos financeiros, conflitos surgem para as duas mulheres. A primeira convive com sua solidão, passando muito tempo em casa e se esgueirando pelos corredores da casa com inveja da dinâmica da família que a recebeu. A segunda começa a brigar constantemente com seu marido e sente dificuldades em atuar em um filme que exige dela esforço intelectual e físico. As dificuldades citadas convergem para uma reviravolta no segundo ato que afeta as irmãs e coloca Mona num impasse moral: tornar-se ou não um pouco mais parecida com Sam e ocupar seu lugar na família.
A construção até o segundo ato deve muito da sua eficiência também à trilha sonora. Os acordes criados com o uso de pianos e teclados evocam a melancolia da protagonista, resultante da frustração com sua vida e da inveja despertada em relação à irmã – são muitas as sequências em que Mona é filmada escondida sob as sombras observando seus familiares e se imaginando naquela situação. Na transição do segundo para o terceiro ato, a trilha sonora assume um tom de suspense compatível com o desenvolvimento dramático da trama, ainda que apareça abruptamente sem uma preparação narrativa gradual e cuidadosa.
A estreia da dupla de irmãos na direção é discreta, evitando a utilização de recursos narrativos muito complexos ou chamativos. Jérémie e Yannick Renier constroem uma identidade visual realista para o longa, posicionando a câmera de tal maneira que nos sentimos mergulhados na narrativa como observadores do que acontece. Os cineastas, quando se fazem mais presentes, preferem a sutileza na composição e no encadeamento dos planos: em determinados momentos, a câmera se movimenta lentamente num travelling para revelar algum espaço do ambiente que reserva uma informação ou um personagem importante para a sequência que se desenrola (por exemplo, a apresentação da casa de Sam); e planos estáticos são construídos enquanto a ação acontece à frente para nos dar tempo de observar os acontecimentos e as interações entre os personagens, como se estivéssemos numa posição privilegiada (por exemplo, o tenso confronto entre as irmãs no terceiro ato).
Porém, é na passagem do segundo para o terceiro ato que o filme derrapa nas escolhas que toma. O ápice do embate entre Sam e Mona não acompanha a mesma eficiência da apresentação inicial das relações entre as duas personagens por sugerir três possíveis direções para a narrativa. Nesse sentido, as divergências entre elas tem um desenvolvimento precário, após a reviravolta colocada no segundo ato, e as expectativas de um confronto mais dramático apenas se concretizam nos últimos poucos minutos da projeção. Trata-se, então, de um encerramento rápido e brusco para os ressentimentos possíveis de serem produzidos no interior de uma família – a falta de preparação dramática da narrativa frusta o espectador esperançoso pela exploração de um tema rico de opções.
“Carnívoras” tem algumas qualidades reconhecíveis, especialmente na capacidade de as atrizes interagirem dentro das diferenças entre suas personagens e no uso da trilha sonora para embalar suas interações. Pena que tais méritos correspondam à primeira metade do filme e não sejam os únicos pontos necessários para a conclusão da trama. Os defeitos aparecem justamente na forma de explorar o clímax da história. Algo relevante que compromete a impressão final ao término da projeção.
Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês 2018.
Um resultado de todos os filmes que já viu.