“CARGO” – Repete, entedia, mas funciona
Um pai vai fazer de tudo para proteger sua família em um mundo pós-apocalíptico, subjugado por criaturas estranhas. O comportamento padrão das criaturas cria regras próprias para os que tentam sobreviver. Essa poderia ser a premissa de “Um lugar silencioso”, mas (infelizmente) é o novo filme da Netflix, CARGO.
A falta de originalidade cerca o longa, usando da mesma velha mecânica dos zumbis: infectados podem infectar os outros. Por mais repetitiva que essa lógica seja, “Cargo” até merece aplausos: o filme usa desses recursos para contar um drama familiar emocionante. A dupla de diretores, Ben Howling e Yolanda Ramke, é responsável também pelo curta-metragem de 2013 de mesmo nome, que inspirou essa película. Seu trabalho é bem executado, extraindo o máximo de Martin Freeman, que é o grande destaque. No papel do pai protetor, Freeman é capaz de demonstrar toda a sensibilidade e responsabilidade que sua função requer. Susie Porter é a sua esposa, Kay, que só está lá quando é necessária.
Um road movie em sua essência, o longa mostra um belo trabalho da fotografia, que é sem sobra de dúvidas um dos mais importante elementos na construção dessa narrativa. As filmagens nos desertos e planícies australianas, através de drones, que mostram planos abertos e áridos, demonstram a solidão e a devastação do universo da trama. As cores quentes do meio ambiente contrastam com as cores frias das roupas dos protagonistas, refletindo o distanciamento entre a mentalidade de sobrevivência do resto do mundo. No quesito trilha sonora, o filme entrega uma boa experiência, através de violinos e pianos marcantes, que não compõem uma canção na maioria das vezes, mas que atacam quando há algum elemento de suspense na tela. Isso funciona bem e condiz com a proposta do longa, que mescla esses elementos da trilha com a edição de som para produzir um aspecto realista e misterioso.
O filme consegue cativar graças às boas atuações e os elementos visuais que enriquecem a experiência. Contudo, há uma mesmice monótona difícil de ser ignorada. Toda a jornada do protagonista passa por elementos extremamente recorrentes em outros filmes do gênero. Furos no roteiro de Yolanda Ramke também são perceptíveis, mas não estragam os poucos pontos em que o filme funciona. Contudo, é difícil desvincilhar a trama desse longa de qualquer outro filme de sobrevivência, com elementos apelativos que servem apenas para criar uma conexão entre o protagonista e o espectador. Conexão esta que não vem através de elementos de roteiro, fotografia ou qualquer outro aspecto cinematográfico, mas sim de uma apelativa ligação emocional entre personagens. Isso causa no público uma identificação com o protagonista, que é artificial, mas ainda existe.
Apesar disso, é apresentado um bom drama que funciona a ponto de prender o espectador até o final do filme. O desfecho aposta numa linearidade construída pelo roteiro que pode parecer um plot twist. Ora, se os diretores arriscam um final emblemático e emocionante, porque não trabalhar todo o resto da obra de tal forma? De qualquer forma, é graças à interpretação de Freeman que esse filme não entra no rol de “filmes de zumbi genérico”. Seu arco é dramático e, curiosamente, independente de todos os laços estabelecidos por ele durante a trama. Isso demonstra a ênfase narrativa em seu personagem e traz mais destaque a cada movimento e ação dele, pois diretamente é responsável pelo destino da filha e de Thoomi (Simone Landers), já que seu destino está “selado”.
Repetitivo, previsível mas com uma carga dramática forte, “Cargo” se mantém com dificuldades. O tom “The walking dead” de alguns momentos tira o foco da história principal, além de raramente ser eletrizante quando deveria. Novamente, Freeman entrega o que foi pedido e é o grande destaque, junto com a bela fotografia que ajuda a narrativa a ser construída através de planos abertos, causando a sensação de estar, de fato, sozinho e abandonado no meio das planícies. Não sobra muita coisa a ser realçada nesse longa, mas ainda vale como uma história de família, perdas e sobrevivência.
Apaixonado por cinema e pela arte de escrever.