“CARANGUEJO NEGRO” – O que nos motiva a lutar
As justificativas que levam cada soldado a seguir na luta são o combustível que alimenta a guerra? Em meio ao terror inóspito do campo de batalha é preciso a todo momento relembrar o porquê de estar ali, mesmo que para isso se invente um motivo a cada hora. O poder dessas questões é colocado em evidência graças à premissa de CARANGUEJO NEGRO, ao mesmo tempo em que sua conclusão leva o longa para o caminho contrário.
A protagonista Caroline Edh, junto de uma equipe de mais cincos membros até ali desconhecidos, precisa atravessar uma distância de 160 quilômetros de mar congelado usando patins de gelo para levar ao outro lado uma carga ultrassecreta que acabará com uma guerra que está sendo travada há anos.
Caroline, que não acredita na missão, acaba sendo motivada por um comandante que promete a ela que, ao chegar ao outro lado, encontrará sua filha, da qual foi separada no passado em meio a um ataque, o que é mostrado em cenas de flashback. É então que, na força motriz de reencontrar esta filha, o filme tenta sustentar toda a carga dramática. Porém o longa parece falhar justamente ao tentar alimentar a relação das duas personagens e se sustenta apenas no básico para tentar ganhar a afeição do espectador: o fato de serem mãe e filha. Nada disso realmente importa naquele espaço, pois tanto essa motivação como a dos outros soldados só existe em seus corações.
O longa brilha de verdade justamente quando entra nessa travessia; esse lugar desértico e gélido acaba por formar um simulacro de toda a guerra. O grupo apenas segue em frente, olhando para o horizonte, na esperança de não darem um passo em falso e afundarem no gelo. Não sabem o que carregam, não conhecem quem está ao seu lado e nem ao menos conseguem ver quem atira neles ou quem é o inimigo. Até mesmo os parceiros podem vir a ser traidores, a única coisa confiável é seu motivo de estar ali. Então Caroline é irrefreável, a cada morte, a cada ferido, mais uma lembrança da filha, mais um motivo para seguir.
Noomi Rapace é realmente a estrela do filme, os momentos dramáticos são elevados por seus olhares que evitam o contato e ao mesmo tempo demonstram a sua determinação. A estrela já está bem habituada a esse tipo de papel, personagem forte em filmes de ação e espionagem. Inclusive já protagonizou outros longas do próprio catálogo da Netflix, como: “Onde está a segunda?” (2017) e “Close” (2019).
Um aspecto que se destaca no filme é a ausência de informações. O motivo da guerra não é dito, nem quais povos participam do conflito ou há quanto tempo este ocorre. Isso tudo evidencia mais uma vez como a travessia e aquele espaço funcionam tão bem como representação metafórica da guerra. O que os personagens encontram e enfrentam a todo momento são os rastros do conflito, seja na forma de refugiados famintos, seja de um casal de idosos que decidiu ficar para trás, seja, até mesmo, de corpos no gelo que atrapalham a travessia. Em dado momento enfrentam um soldado em um bunker, ao chegarem lá havia mais dois que já estavam mortos pelo frio, aquele soldado solitário parecia, então, estar apenas aguardando naquela defesa sem sentido o momento de sua morte.
Ao explorar esse espaço imageticamente, temos belíssimas sequências dos personagens patinando em silêncio e sincronia, em contraste com todo o peso que carregam em suas mãos. A identidade visual do filme é estabelecida nesses planos longos e silenciosos para depois ser quebrada por tiros que percorrem o céu à noite enquanto os personagens deitam no chão na esperança de não serem o alvo naquele campo aberto. Por fim, os personagens são levados aos limites para completarem a missão e é depois disso que o filme decai totalmente.
Em seu terceiro ato o filme se perde totalmente, a premissa chega ao fim e, quando o objetivo é alcançado, todo o simulacro é rompido e a guerra volta a ser real. Para sustentar os personagens na narrativa é preciso então recorrer a mero moralismo e idealismo, que em nenhum outro momento havia aparecido na trama. No momento em que o diretor Adam Berg apela para a transformação da personagem em uma heroína que luta para salvar o mundo, todas as nuances acabam, pois não sobra espaço para respostas incertas: o sacrifício é heroico? No fim ele parece dizer que sim, enquanto toda a travessia negava isso. O roteiro, também assinado pelo diretor, acaba por estabelecer fora do simulacro uma mera ilusão de que há alguma ação individual que possa impedir o que, na verdade, de acordo com tudo que havíamos visto no filme, já havia ocorrido, a destruição de tudo. Ainda há espaço para uma cena lúdica constrangedora onde essa mãe em seu ato de sacrifício alcança a recompensa divina, destruindo de vez as questões levantadas durante o filme.
Sempre teimando em colocar em palavras, tudo aquilo que só é possível sentir.