“CAPITU E O CAPÍTULO” – A imortalidade perante roedores de restos
A morte é reconhecida como uma força que não discrimina ninguém. Seja quais forem as características de determinado indivíduo, ninguém está a salvo dessa manifestação natural. A filosofia perante a finitude deu origem a diversas obras sobre a humanidade, por vezes filtrada a partir de microcosmos e dinâmicas de relacionamento. Quem muito explorou essa noção foi o prestigiado escritor Machado de Assis. Por mais que atribua os vermes, devoradores de restos mortais, a outra de suas obras, é CAPITU E O CAPÍTULO que vincula essa mesma simbologia a outro dos clássicos do influente autor brasileiro.
O filme acompanha fragmentos da vida de Bentinho, um abastado representante da nobreza brasileira, ao lado da esposa Capitu, amiga de infância por quem cresceu apaixonado. Eles discutem sobre aspectos de seu casamento e testemunham a sua derrocada quando Bento passa a suspeitar que o filho talvez não seja seu.
Dirigido por Júlio Bressane, vale observar como as heranças de sua cinematografia marginal se aplicam ao marco literário. Apostando em uma montagem essencialmente experimental, o filme se desvia da dramaturgia convencionada para apostar em uma desconstrução de suas imagens. Isso não determina um trabalho pouco elaborado das personagens, que ainda assim são munidos de facetas muito bem exploradas pelo elenco.
Mas a aparente falta de interesse pelos diálogos, e pela unificação de cada situação como um todo, geram um aprisionamento curioso e fundamental para os questionamentos ali levantados. É como se a direção prendesse aquelas figuras dentro de sua lógica de encenação, fadados a reproduzir posições e deslocamentos dentro da imagem que reforçam a sua própria existência como elementos fictícios.
Isso autoriza uma flexibilidade ainda maior do formato, que flerta com diversas texturas diferentes. Quase como se a unidade geral do projeto estivesse colapsando, demonstrando arestas próprias de uma arte que, tal como as vítimas de um ceifador mitológico, talvez seja esquecida daqui a alguns anos. É particularmente interessante como Bressane utiliza os ruídos digitais nesse sentido, associando os mesmos a parábola dos vermes roedores de vestígios humanos.
Nem por isso a obra deixa de atuar em uma instância de comentário mais direta. A alternância entre uma linha temporal presente e os insights de um Bento mais velho, e que compartilha as memórias de sua vida em um cenário teatral, reforçam a crítica de costumes ali presentes. Estamos diante de personas caricatas, embalsamadas em princípios de classe e reduzidas as suas funções sociais imediatas.
Talvez seja esse o aspecto que melhor justifica a formalidade ainda presente aqui. Da composição que aprisiona as quatro personagens pela espacialidade dos cômodos, ao bom uso da profundidade de campo através da maneira em que as mesmas se dispersam, existe uma manipulação ainda muito concreta do campo visual. É como se essa objetividade entrasse em conflito com o uso mais abstrato das outras imagens, o se emparelha, de certa forma, à queda da relação entre Bento e Capitu.
Finalmente, merece destaque, ainda, a maneira como Bressane trabalha o rosto humano, se atendo aos mesmos durante muito tempo em planos de reação. Isso não só possibilita a relativização das interpretações, questionando a psique de cada personagem, como também reforça um exercício de autoanálise imperado pelo ego de cada um daqueles ali presentes. Somos prisioneiros dentro da investigação que eles fazem de si, buscando respostas de seu âmago diante do medo da morte.
Quem brilha nesse aspecto, especialmente, é Vladimir Brichta e Mariana Ximenes, cuja atuação bem habita a dualidade entre a dramaticidade clássica e a fragmentação de uma experiência mais lúdica. Como um todo, é nesse lugar ambíguo que “Capitu e o capítulo” se situa. Diante de um dos principais disparadores da filosofia, ele explora o desfalecimento das dimensões mais literais de uma imagem, não discriminando, tal como um verme, personagens, espaços ou simbolismos.