“CANÇÃO AO LONGE” – A dificuldade de pertencer
À deriva talvez seja o lugar favorito dos mais complexos protagonistas. Externos a estruturas estáveis do viver, eles fazem da inconstância a sua própria forma de vida, lutando para encontrar com o todo e a si mesmos. Essa dificuldade universal se transmuta bastante bem para a forma cinematográfica, que consegue encapsular a distância esparsa que se forma entre as múltiplas facetas possíveis de um mesmo ser. É na busca pela compreensão do próprio pertencer que surge o potente CANÇÃO AO LONGE, representante da força que as protagonistas brasileiras podem exercer.
Criada por duas mulheres brancas, Jimena nunca teve a oportunidade de conhecer o pai, negro. Ela tenta acreditar em uma conexão forjada por antigas cartas deixadas pelo tempo, mas não possui nenhuma ligação com as raízes de sua cor. Enquanto tateia as dinâmicas ao seu redor, e questiona a ausência de conexões reais em sua vida, ela inicia um relacionamento com um pai solteiro, que relativiza todas as dúvidas em sua vida.
Em sua estreia como diretora de ficção, é curioso como Clarissa Campolina intermedeia laços sólidos com ânsias concretas. Ela entende a impossibilidade de se reverter completamente as intermitências das suas personagens, conferindo à produção uma margem de abstração e naturalidade na maneira como conduz o seu elenco. É como se inexistisse uma necessidade de se guiar a ação dramática, pincelada por passagens narrativas ou demais estratagemas de estruturação. As interações são naturais e o tempo da protagonista para si mesma condiciona uma personagem bastante crível, real para além do iniciar e do corte do sensor da câmera.
É claro que esse fator é engrandecido pela interpretação de Mônica Maria, que apesar da presença sutil faz da sua personagem uma fundamentação da própria existência. Em entrevista, Clarissa revelou que a escolha da atriz impactou inclusive nos rumos do roteiro, que incorporou as experiências raciais compartilhadas por si mesma à sua personagem.
Esse trâmite entre o real e o subjetivo, interpretado pelo filtro de uma lente cinematográfica, é mais uma das estratégias que convertem para a dualidade do filme. Orbitando as dinâmicas mais diretas que existem ao seu redor, é como se a manifestação de Jimena se desse em um plano de suspensão.
É interessante pensar como essa forma de articulação da personagem dialoga com a representação da figura marginalizada, seja ela qual for. Estaria ela fadada a uma sequência ininterrupta de ressignificações pela arte, ou teria fundamento em um campo real? Tal questionamento justifica bem esse estilo dúbio do longa, inserindo Jimena nesse espaço perdido entre a sua própria digressão e a emancipação concreta.
Finalmente, é bem trabalhada a busca por respostas de sua própria origem, e a relação oposta que isso traz com o próprio presente dessa personagem, cada vez mais distante daqueles ao seu redor. Por isso o encontro inesperado desse amor ressoa não como uma busca pelo outro, mas talvez pelo indivíduo em si mesmo.
Poético a sua própria maneira de costurar um tecido social ao dilema existencialista, “Canção ao longe” resgata a linguagem exclusiva do cinema também presente em sua instância política. Transmutando experienciais reais à fabulação, o filme é um belo conto sobre a busca pelo pertencimento, que se esconde através das superfícies mais cristalinas das imagens.