“BRUXAS” – Boa ou má? [26 F.RIO]
De certo modo, BRUXAS remete a “Haxan – A feitiçaria através dos tempos“. Enquanto o longa sueco-dinamarquês de 1922 discutiu o conceito de bruxaria a partir de uma perspectiva histórica da Idade Média até o início da modernidade, o documentário de Elizabeth Sankey possui um tom mais intimista sob o recorte feminino da maternidade e da saúde mental. Em comum, os dois trazem a subversão dos sentidos imediatos do termo bruxa.
O filme se estrutura como um livro de feitiços dividido em capítulos. Em cada um deles, a cineasta traça paralelos entre a sua internação psiquiátrica após o nascimento do filho e a representação das bruxas na sociedade ocidental. Temas como depressão pós-parto, psicose e expectativas sociais do papel feminino são trabalhados através de clipes de feiticeiras do cinema e de entrevistas de pesquisadores, médicos e outras mulheres que passaram pela mesma situação.
No decorrer dos séculos, as bruxas povoaram o imaginário ocidental com sentidos maléficos. Porém, e se essa figura fosse reinterpretada à luz das outras concepções? Elizabeth Sankey não é a primeira a fazer uma análise crítica e feminista ao debate, logo se insere em um movimento de compreender a bruxaria como um conceito atribuído às mulheres que não se sujeitaram aos parâmetros de sociedades patriarcais. Era acusada de ser bruxa qualquer mulher, ao longo de diferentes épocas, que não se adequava ao papel doméstico de cuidadora dedicada do lar, Deveria ser, então, mãe, esposa, provedora e feliz. Posturas que divergissem desses adjetivos seriam demonizadas ou depreciadas. Na narrativa, os exemplos são realizar atividades sociais fora do ambiente doméstico, demonstrar sofrimentos da maternidade e atuar como curandeiras.
Se na abordagem temática o documentário se aproxima de “Haxan“, a estrutura narrativa tem ponto de contato com outras obras de dimensão coletiva com um ponto de partida pessoal. É o que se pode notar nos trabalhos de Petra Costa, como “Democracia em vertigem“. Além de narrar as reflexões propostas, Elizabeth Sankey compartilha suas dores, ansiedades, pensamentos suicidas e depressão pós-parto. Ela aborda a exigência física dos cuidados do filho, a tristeza profunda decorrente da mudança profunda de sua vida (atribuída à criança ou a si mesma) e sua internação em uma clínica de tratamento psicológico. A história de vida da diretora é entrelaçada às trajetórias de outras mulheres, sejam elas estudiosas do tema da bruxa, que lançam um olhar analítico para a questão, sejam elas mães, que passaram por suas próprias experiências dolorosas.
A discussão sobre os papeis sociais esperados das mulheres e as consequências de sua rejeição confere atenção especial aos aspectos emocionais de quem não corresponde aos modelos patriarcais. Para isso, a narrativa insere diversos trechos de filmes que tratam de bruxas, como “As bruxas de Eastwick“, “A bruxa“, “As jovens bruxas“, “O mágico de Oz” e “A bruxa do amor“, ou de transtornos psicológicos, como “A troca” e “Na companhia do medo“. Inicialmente, a utilização das imagens proporciona efeitos complementares ou diálogos interessantes à narração da cineasta, deixando de ser meramente ilustrações ao argumento central. Nos primeiros minutos, quando se estabelece o paralelo entre bruxas e mulheres alheias às imposições sociais de gênero, a diversidade de clipes contribui para a construção multifacetada de mulheres que podem se sentir oprimidas ou para a descoberta de possibilidades de sororidade entre elas. Porém, à medida que o documentário se desenrola, as imagens perdem o impacto inicial, tornam-se repetitivas, permanecem em uma posição ilustrativa e se sucedem em um ritmo intenso com poucos efeitos dramáticos ou estéticos.
Existiria também outra possibilidade expressiva de usar trechos de filmes, que até surge pontualmente em alguns momentos sem alcançar um princípio coeso para a encenação. O cinema pode auxiliar na construção de imagens permitidas e proibidas para a sociedade, divulgando/reforçando estereótipos e subvertendo padrões estabelecidos. Assim, “Tully” com Charlize Theron aparece como um exemplo de representação nada glamourizada do trabalho materno, algo que criou uma conexão especial com Elizabeth Sankey a ponto de finalmente encontrar uma personagem com a qual poderia se sentir identificada. E, acima de tudo, “O mágico de Oz” é mais referenciado por possibilitar a reflexão acerca da dualidade entre bruxa boa e má. A primeira deixa de ser vista simplesmente como a encarnação da bondade e da solidariedade para ser compreendida como a definição da mulher enquadrada nos pressupostos do patriarcalismo. Já a segunda não se resume apenas à realização da maldade por puro prazer ou por interesses egoístas, pois pode simbolizar à forma como a mulher que resiste às violências de gênero é enxergada. Trata-se de uma possibilidade que não se sustenta ao longo da narrativa.
O uso reflexivo ou a potencialidade de cura pelas imagens se torna, então, um elemento trabalhado com discrição pelo filme. “Bruxas” se ancora, de maneira mais precisa nos relatos das mulheres entrevistas e nas relações de amizade que criaram com Elizabeth Sankey. A partilha das experiências individuais e a terapia em grupo possibilitada pela aproximação delas (além do contato presencial com conversas, idas a hospitais e convívio nas atividades prosaicas do dia a dia, a criação de um grupo de Whatswapp é citada como um ferramenta importante para esse rede de apoio e acolhida) se revelam os momentos mais poderosos. Enquanto isso, a seleção de imagens cinematográficas de outras produções sofre com a falta de um trabalho mais consciente do que elas transmitem, como feito em “Tully” e “O mágico de Oz“. Ainda assim, a invocação do clássico musical permite ao documentário chegar a uma conclusão diferente de “Haxan“: ser uma bruxa e pertencer a um clã pode ser reapropriado e reinterpretado para a busca de maior liberdade em consonância com uma luta coletiva integrada com outras mulheres.
*Filme assistido durante a cobertura da 26ª edição do Festival do Rio (26th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.