“BROKER – UMA NOVA CHANCE” – A travessia da falta de raízes
Não há como negar que a busca por pertencimento diz respeito a um dos maiores desafios voltados à natureza humana. Podendo trascender laços de sangue e lugares espaciais, não são poucos aqueles consumados pelo sentimento de isolamento, incapazes de se encontrar entre parentes, que em muitos casos sequer estão presentes, e, muito menos, consigo mesmos. O abandono de uma criança é o que desperta esse dilema geográfico e espiritual no sul-coreano BROKER – UMA NOVA CHANCE, longa que propõe a formação de sua própria família improvável, talvez mais complexa que a própria capacidade do filme de administrá-la.
Após deixar o filho de pouco mais de um mês à porta de um orfanato, a confusa Moon So-young se arrepende e decide garantir que o bebê consiga pais promissores. Ao retornar, entretanto, ela descobre que o mesmo foi abduzido por uma dupla de traficantes de crianças, que se dedicam à venda para casais infertéis para garantir o seu sustento de vida. Isso leva os três a se unirem na busca de um futuro para o pequeno abandonado.
Dirigido pelo vencedor da Palma de Ouro, Hirokazu Kore-eda, o filme reúne assim um grupo de moral improvável para questionar as suas percepções de conexão, dissecando-os através de uma viagem de ampla quilometragem para demonstrar que nada é o que superficialmente aparenta ser. Exemplo direto nesse âmbito está no carisma típico de Song Kang-Ho, ator que dá vida ao organizador dos esquemas de tráfico infantil. Envolvido com gangues escusas com a qual acumulou duras dívidas, o seu Ha-Sang-hyun permite ao astro trabalhar um homem muito distante da amargura que se esperaria do microcosmos que o orbita.
Contagiante, ele investe na procura dos melhores casais possíveis para cada criança, genuinamente comovido pela expectativa de trazer a eles as melhores condições possíveis. Pode-se dizer o mesmo de seu parceiro e orfão, Dong-Soo, interpretado por Gang Dong-Wong. Dividido entre o carinho de sua criação em orfanato, e a opressora ausência dos pais que lhe abandonaram, ele projeta as incompletudes que lhe atravessam na mãe arrependida.
Conforme a pequena van da dupla duvidosa atravessa a Coréia do Sul, entretanto, ele se permite uma aproximação com a mesma, tentando entender as possíveis motivações por detrás da sua escolha. Ainda nesse âmbito, entretanto, é frustrante perceber que a performance de Ji-eun Lee, ainda que distante de um trabalho ruim, naufrague a sua personagem.
Munida de uma bem-vinda densidade em sua história pregressa – dissecada aos poucos principalmente nos depoimentos extraídos pela dupla feminina de policiais que os acompanham -, o alcance unifacetado da interpretação não se equipara à transformação interna promulgada pelo roteiro. É como se o universo diretamente mais dramatúrgico das propostas de Kore-eda não estivesse o tempo todo equilibrado com a sagacidade de seu roteiro, deixando de observar as discussões que perseguem as suas personagens em um campo igualmente imagético.
Não existe uma plasticidade e organização estética que alavanque os momentos mais lúdicos da viagem literal feita pelo grupo, mitigando a força dos seus momentos mais contemplativos e que, despreocupados no avançar metódico da narrativa, se permitem flertar com a beleza inerente aos laços que ali estão se formando. O registro acaba sim restrito ao plano e contraplano dos diálogos e a ampla abertura das lentes que observam o espaço, ferramentas que poderiam ser muito bem utilizadas para contrapor o distanciamento subjetivo entre a moralidade social e o código de comportamento específico que permite aos viajantes passar a se entenderem como uma família.
Embora o plano final do filme até se destaque nesse campo mais linguístico da Sétima Arte, isso torna o conjunto muito dependente de suas personagens, que apesar da boa dualidade de suas principais características, atingem um limite prejudicado pela duração de mais de duas horas.
Como um todo, entretanto, seria injusto não reconhecer a beleza dessa obra que está em constante travessia. Mesmo incompleto, tem-se em “Broker – uma nova chance” um filme de ressignificação de raízes, que renuncia aos demarcadores geográficos de pertencimento de suas personagens ao lhes empurrar para uma jornada de encontro com novas, e jamais esperadas, conexões. É nesse processo que se configura uma agradável reflexão sobre a relatividade dos laços familiares, muito distantes de qualquer classificação que tente reduzir a complexidade de qualquer personalidade humana.