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“BRAZYL – UMA ÓPERA TRAGICRÔNICA” – Política didática

Fazer uma sátira política não é tarefa simples porque depende da escolha do tom, da construção semântica e dos elementos formais. Algumas encontraram um equilíbrio consistente e marcaram seu lugar na história do cinema, como “Dr. Fantástico” e “O grande ditador“. Em outros casos, a armadilha de parecer uma aula superficial de história ou de sociologia repleta de chavões típicos das redes sociais afeta o filme e suas boas intenções. Esse é o problema de BRAZYL – UMA ÓPERA TRAGICRÔNICA, que propõe uma leitura histórica sobre as mazelas do país através de uma linguagem cinematográfica restrita e de um discurso didático sem qualquer sutileza.

Baseada na peça teatral “Brazyl: Poema anarco-tropicalista“, a obra reflete sobre a realidade política e social do Brasil a partir da ideia de antropofagia cultural de Oswald de Andrade. Na reflexão, episódios importantes da década de 1930 até os dias atuais são encenados, passando pela colonização portuguesa, pela ditadura civil-militar de 1964 a 1985 e o governo Bolsonaro. Assim, várias questões contemporâneas são entrelaçadas com as raízes históricas dentro da ficcionalização de eventos reais.

Desde o princípio, o diretor José Walter Lima deixa claro que a linguagem teatral é importante para a narrativa. As sequências se passam no palco de um teatro, os enquadramentos se alternam entre planos médios e closes, a estrutura dramática é dividida em esquetes e os atores entram e saem da cena. A opção por um teatro filmado restringe a realização de um filme em termos estéticos e narrativos, pois a dinâmica visual se torna repetitiva e até empobrecida com uma decupagem que se volta apenas para parte do corpo dos atores e para um cenário esvaziado atrás. As transições entre as esquetes também deixa de explorar possibilidades expressivas do cinema, já que se resume a cortes secos e passagens abruptas de temas e situações. Em determinados momentos, alguns elementos cinematográficos aparecem, como a trilha sonora, as ilustrações gráficas e imagens de arquivo. A combinação desses recursos cria um desfile quase carnavalesco de estímulos visuais e estéticas que remete à antropofagia modernista, apesar de tais códigos possibilitarem poucos efeitos dramáticos.

A união de cenas dramatizadas, monólogos, arquivos visuais de época, performances musicais e situações mais ou menos realistas desperdiça as possibilidades de crítica política que surgem. Ocasionalmente, o uso de canções, como “Danúbio azul” e “Aquarela do Brasil“, é ressignificado para problematizar injustiças sociais e problemas políticos ao longo da história do país. De forma semelhante, algumas imagens sobre escravidão, corrupção, colonialismo, fascismo e miséria são inseridas para indicar que são processos capazes de deixar sérios impactos sobre a sociedade brasileira até os dias de hoje. No entanto, relações entre passado e presente são comprometidas pelas escolhas gerais na condução dos atores. Clara Paixão, Clóvys Torres, Lucas Valadares, Rosana Judkowitch, Vanessa Carvalho e Wagner Vaz demonstram uma forte presença cênica para o teatro e atuam como se sempre precisassem discursar em um comício político ou declamar poemas complexos. Sendo assim, a dramatização de eventos reais que buscam um naturalismo se choca com declarações excessivamente didáticas como uma aula simplificada.

O conteúdo das esquetes sofre, então, com problemas relativamente comuns no cinema político. Como discutir questões complexas sem parecer um discurso simplista carregado de clichês que quer educar os espectadores? Como articular uma discussão temática com a concretização estética da proposta sem deixar a narrativa empobrecida? José Walter Lima não consegue evitar os riscos de criar sequências que sentem a necessidade de abordar uma infinidade de questões contemporâneas do Brasil, explicá-las como se o público fosse imaturo para compreendê-las e torná-las uma caricatura involuntária. Por exemplo, a dramatização de um confronto familiar em uma noite de Natal transita entre violência doméstica, defesa do porte de armas, discriminação racial, perseguição a artistas, polarização ideológica e ascensão da extrema direita. Em outra passagem, uma hipotética entrevista de uma jornalista estrangeira com o presidente do Brasil (em alusão a Jair Bolsonaro) busca explicar de maneira esquemática os ataques à democracia nos últimos anos e a desvalorização da participação popular na política.

É verdade que algumas ideias do filme são, a princípio, pertinentes para uma sátira política do presente. Não haveria uma crítica sólida o suficiente se as condições atuais do Brasil fossem tratadas sem ligação com as heranças do passado nacional. Na abordagem estética, o diretor investiga o reacionarismo e o fascismo contemporâneos como desdobramentos do colonialismo, da escravidão, do elitismo e da violência de outros períodos históricos. Quando uma esquete é feita, a montagem leva a narrativa para fotografias ou ilustrações do passado colonial e violento ou outra dramatização tematiza diretamente as consequências desses fenômenos. Porém, a compreensão dos processos na longa duração, que seria muito bem-vinda, exige um cuidado maior para não deixar a impressão (o que, de fato, ocorre) de que as relações entre todos os temas seja mais um chavão de setores sociais progressistas ou um argumento frágil facilmente combatido. Além disso, a dificuldade de conectar tantas questões em pouco tempo conduz a conclusões perigosas em certas passagens, como a ideia de que a origem das mazelas do país parte de problemas morais e individuais de integrantes da elite brasileira.

Por vezes, o filme tenta se distanciar das explicações simplificadoras em torno do individualismo e do moralismo porque compreende que a raiz das contradições do país é mais profunda e diz respeito ao sistema capitalista como um todo. É o que acontece na cena em que uma esquete se torna um programa de entrevista e um banqueiro disserta sobre como os grandes bancos sustentam a corrupção. Seria produtivo se esse exemplo não fosse uma exceção e as demais sequências que tentam algo parecido não utilizassem novamente frases de efeito isoladamente como se fossem suficiente para passar alguma ideia. De maneira geral, “Brazyl – Uma ópera tragicrônica” encara a análise e o debate político dentro de uma linguagem hermética dominada somente por algumas pessoas que precisam explicar didaticamente o que se passa no Brasil. Apresentando-se, assim, com o vocabulário, os discursos e a própria estética, é um filme que tem dificuldade de se comunicar com um público mais amplo.