“BONS SONHOS” – As excentricidades que cristalizam as perversidades [47 MICSP]
Para um mundo onde a colonização era uma realidade e algumas pessoas eram invisíveis (ou, no máximo, meros instrumentos), um tipo específico de comédia pode ser um meio adequado para escancarar o quão absurda era a situação. O que é feito em BONS SONHOS é justamente uma comédia de absurdos, na qual as excentricidades dão corpo às perversidades.
Em uma ilha na Indonésia no início do século XX, o holandês Jan é um latifundiário que lucra com sua plantação de açúcar. Casado com Agathe, ele mantém um caso extraconjugal com Siti, mulher nativa com quem teve um filho, Karel. Com a morte de Jan, Agathe pede para que seu filho, Cornelis, assuma os negócios da família para que a situação não se altere. Em seu testamento, porém, Jan deixou seus bens para Karel.
Falar em era colonial (ao menos em colonização de exploração) implica tratar de um escravagismo velado, isto é, da submissão de um grupo a condições cruéis. Não é outra a visão de Ena Sendijarevic, diretora e roteirista do longa que, ao invés de recorrer ao drama para denunciar tal contexto, opta pelo humor, mais especificamente, a comédia do absurdo e a sátira. A comédia do absurdo está, por exemplo, em situações genuinamente pitorescas (o tigre no meio da sala, as funções de cerimonialista e tabelião em um só indivíduo, o flagra de Josefien por Siti, tudo o que envolve o cavalo de madeira etc.), bem como em atos inesperados (Reza oferece a mão para Josefien, mas não para o que ela espera). Também a sátira encontra espaço na obra, com cenas que tornam o patético nada menos que cômico (a contagem regressiva de Karel). O próprio título do primeiro capítulo do longa, “O amor de Agathe”, é sarcástico, dado que Agathe não demonstra amor por ninguém além de si mesma.
Sem romantizar as relações de filiação, Karel encontra nos genitores elementos afetivos. Imprudente ao dar uma arma a uma criança, Jan demonstrou preocupação com o futuro do filho, que, por sua vez, visivelmente sofre com seu falecimento. O garoto tem também uma mãe muito presente e orgulhosa (talvez até em demasia, arranjando inimizades). Não é o mesmo o caso de seu meio-irmão, pois nada indica que Jan foi afetuoso com Cornelis (e o fato de não ser citado no testamento é significativo), enquanto a relação deste com a genitora é ruim no começo e apenas piora. Depois de uma chantagem para a viagem de Cornelis e de alfinetadas desferidas por Agathe quanto à “pressa” para o casamento (um diálogo curto, mas muito revelador), o elo entre mãe e filho apodrece crescentemente.
As personagens de “Bons sonhos” são interessantes de diferentes maneiras. Reza (Muhammad Khan, ótimo) é a mais complexa, um homem revoltado com a submissão passiva aos “totokos” (como os holandeses são chamados), o que é agravado por sua paixão por Siti. Ousado, Reza enfrenta os opressores mesmo sabendo que isso pode ter severas consequências, mas essa atitude parece mais forte do que ele. Josefien (Lisa Zweerman, também ótima) é reduzida a uma pulsão sexual e a autointeresses, o que a aproxima de Siti (Hayati Azis), que afirma expressamente que o mundo seria chato se todos tivessem seu espaço. Ambas compartilham a visão de que o mundo se divide entre vencedores e vencidos, usando as armas que possuem para estar no primeiro grupo. A arma de Siti, no pretérito, foi a sedução de Jan; o modo como explora essa sedução, sua dança, ao retornar, tem o mesmo gosto amargo de antes, o que mudou foi apenas a plateia. Apenas mais hipnótica que a expressão de infelicidade impressa por Azis é a mise en scène da dança nas oportunidades em que ocorre. No elenco está também Renée Soutendijk, que encontra em Agathe uma personagem extremamente ácida, porém as razões de sua teimosia (em ficar na Indonésia) não ficam plenamente claras.
Sonora e imageticamente, o filme é belo. Na trilha musical, a Leitmotiv é repetida com novos instrumentos e novo ritmo, ditando as emoções das cenas respectivas. O design de produção coloca cores rubras nos recintos da casa, salvo o verde de uma sala que parece ser o escritório de Jan. O vermelho, prevalente nos demais, é símbolo da agressividade com que os europeus colonizaram a região, na base de sangue igualmente vermelho – fato histórico que é colocado em um invólucro absurdista. É o que se vê na angustiante cena do açúcar caindo ininterruptamente (em montagem paralela com a expectativa de um ato grave de Karel). É o que se ouve da trilha sonora, com zumbidos que incomodam até mesmo o espectador e interrupções da música extradiegética com atos intradiegéticos. As ideias traduzidas por imagem e som podem parecer esquisitas, mas cristalizam um pretérito de perversidade humana que é sempre importante revisitar para não repetir.
Em tempo: o nome nacional é um pouco equivocado. O título “Sweet dreams” (“doces sonhos”, em tradução livre) é uma ironia maliciosamente sagaz, a ser compreendida melhor por quem assistir ao longa.
* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.