“BONECA RUSSA” – Sobrevivam ao piloto
Geralmente, o piloto precisa ser o cartão de visitas da série: o episódio responsável por conquistar o interesse do público, apresentando suas potencialidades e virtudes. BONECA RUSSA, nova série original Netflix, segue o caminho oposto ao trazer uma abertura que não cativa nem empolga, apenas faz o básico para introduzir sua trama. Isso aumenta o risco de perder uma audiência indisposta a continuar acompanhando algo incerto e nada convidativo à primeira vista; entretanto, os episódios seguintes elevam o nível, mesmo não sendo brilhante ou muito destacado.
Tudo se inicia na festa de aniversário de trinta e seis anos de Nadia, organizada por suas amigas em Nova York: todas as vezes em que tenta deixar o evento, ela morre das mais variadas formas e retorna ao ponto de partida, olhando para um espelho no banheiro. Enquanto revive o mesmo dia ininterruptamente, ela tenta entender o que está acontecendo para escapar da insólita situação. A estrutura dos episódios facilita o desenvolvimento da premissa, sendo apenas oito e de duração muito breve (o maior é o último, com trinta minutos). Essa característica impede “barrigas” na narrativa, momentos feitos claramente para prolongar a obra, torna a resolução dos subplots rápida e concisa e oferece tempo para novos conflitos.
O primeiro episódio simplesmente emula, sem tanta inspiração, o que já foi visto no filme “Feitiço do tempo“: a compreensão por parte da protagonista de que ela está presa em um looping temporal centrado em seu aniversário (ou no máximo no dia seguinte), no qual morre de diferentes maneiras e revive para repetir ocasiões de sua vida. O tom predominante é uma comédia com elementos de sci-fi (em virtude da condição irreal da personagem), porém falha na construção do humor por ser burocrático na preparação das piadas. O nonsense das situações não é bem explorado pela montagem ou pela direção e o elenco é de uma excentricidade simplista que não cria empatia – Nadia, por exemplo, aceita muito rapidamente o que está ocorrendo e não consegue dar carisma a uma mulher de personalidade forte e sem papas na língua.
Após essa abertura, a série apresenta uma evolução. A partir do segundo episódio, o timing cômico é ajustado ao potencializar o absurdo da proposta através de estranhas tentativas de Nadia de compreender o que acontece: investigar possíveis maldições sobre si ou inusitadas conexões com um homem sem teto. O humor negro também é favorecido pela montagem, ao utilizar cortes secos para encadear a sequência de mortes, e pela direção ao colocar piadas sutis no fundo da cena, enquanto outra ação se desenrola no primeiro plano. Além disso, o salto de qualidade se percebe na atuação de Natasha Lyonne, vivendo Nadia, que passa a convencer como alguém de personalidade, dona de comportamentos bizarros e sujeita a conflitos com o ex-namorado e a traumas psicológicos resultantes da relação instável com a mãe.
As transformações existentes na série alcançam outra dimensão a partir do quarto episódio. A introdução de um novo personagem e sua interação com Nadia acrescentam um tom dramático com pitadas de terror à narrativa: o drama é construído através de discussões sobre a percepção da rotina como garantia de segurança; sobre a possibilidade de alterar o passado e de lidar com as consequências de suas ações para outras pessoas; sobre a necessidade de aceitar a impossibilidade de reverter momentos de infelicidade e arrependimento; e sobre a jornada específica da protagonista de confronto com a infância e com as lembranças da mãe. O humor não é abandonado ou esquecido porque ele ainda aparece em passagens politicamente incorretas em torno das mortes surpreendentes ou de situações recorrentes, como o medo de Nadia de escadas.
Os elementos de terror consistem em aparições do passado vistas pela protagonista, geralmente com uma iluminação azulada em tom fantasmagórico, que causam choque ou temor; e nos retornos dos personagens após as várias “ressurreições” ocorridas, que alteram drástica e perigosamente o ambiente ao redor. Visualmente, a comédia, o drama e o terror são estabelecidos com aspectos próprios, dentre eles os já mencionados cortes secos e a composição ampla do plano para potencializar as piadas, os planos longos com closes ou planos americanos enfocando as atuações ou interação entre os personagens e a trilha sonora de suspense criando a sensação de perigo. De forma geral, os recursos técnicos se tornam mais inventivos na metade final da série, especialmente através da montagem paralela e das novas propostas de posicionamento da câmera (uso da steadycam no rosto da protagonista enquanto passa por diferentes momentos da festa de aniversário).
Quando o último episódio chega, as qualidades e deficiências de “Boneca russa” aparecem claramente. O piloto deixa a desejar e as possibilidades de trabalhar multiversos, suas ligações ou os desdobramentos temáticos e narrativos de seu tema são subutilizadas ou exploradas apenas ao final; por outro lado, existe uma evolução qualitativa ao longo dos episódios e o desenvolvimento de uma história amarrada e autocontida que se encerra em um clímax que não precisa ser nem grandioso nem épico. Na balança derradeira entre as falhas da abertura e o avanço posterior, a obra entrega uma experiência de diversão mediana.
Um resultado de todos os filmes que já viu.