“BOM DIA, VERÔNICA” – Jornadas de pessimismo
Os casos de agressão doméstica e feminicídio se multiplicam no Brasil autoritário, retrógrado e misógino de 2020. Em paralelo a isso, a descrença em relação às instituições também cresce em razão de notícias de corrupção. Em uma primeira camada, a série original Netflix BOM DIA, VERÔNICA abordaria a brutalidade de namorados, maridos ou outros homens sobre as mulheres. Porém, um olhar mais profundo oferece também uma perspectiva acerca da crise de representatividade de instâncias que deveriam lidar com a violência.
Tendo como material base o livro homônimo escrito por Ilana Casoy e Raphael Montes, a produção acompanha Verônica Torres, uma escrivã da Delegacia de Homicídios de São Paulo. Após presenciar o suicídio de uma jovem, ela se envolve em arriscadas investigações: ajudar mulheres enganadas por um golpista na internet e proteger Janete de seu violento marido. Esta é ainda mais perigosa porque o esposo em questão é um policial de alta patente, que leva uma vida dupla de autoridade da lei e criminoso cruel.
Por mais que os temas sejam pertinentes e se entrelaçassem aos núcleos narrativos, nem todos os segmentos são eficientes em suas proposta e desenvolvimentos. Especialmente, o arco que trata do golpista que marca encontros amorosos para roubar suas vítimas apresenta irregularidades e é o menos imersivo. Até é possível entender que as intenções seriam mostrar a aflição daquelas que caem nos golpes, as dificuldades de capturar alguém beneficiado pelo anonimato do mundo virtual e as falhas do sistema judiciário. Contudo, a construção visual é tão burocrática que o roteiro é simplesmente levado à tela sem decisões estilísticas que amplifiquem a experiência sensorial – à exceção do primeiro capítulo e da instabilidade emocional transmitida pela inclinação variada dos planos, os demais momentos são encenados apenas para fazer avançar os conflitos.
Algo similar ocorre também no núcleo em torno da protagonista e da sua vida pessoal. Verônica tem um marido e dois filhos, e um trauma familiar envolvendo seus pais que a atormenta mesmo anos após uma tragédia em casa. De um ponto de vista dramático, ele funciona como base para a atuação forte de Tainá Muller como uma personagem compromissada com a luta contra o abuso feminino e afetada por suas vulnerabilidades emocionais; e como uma abordagem estética capaz de marcar o peso de memórias traumáticas no presente através de flashbacks e cenas de devaneios. Por outro lado, o segmento parece solto durante quase toda a temporada e sem conexão com os demais; quando, enfim, cria-se uma articulação com o arco de Janete, a narrativa tenta ressignificar o passado da escrivã de tal forma que a ligação pode soar vaga em certos aspectos e não conspiratória, como se buscava.
Enquanto esses dois núcleos passam por oscilações, o segmento formado por Janete e Cláudio é o mais expressivo para as ideias do seriado. Dentro da temática da violência contra as mulheres, as sequências em torno do casal possuem grande impacto dramático em virtude da gravidade das imagens e da brutalidade das ações do homem, apesar de nem sempre serem atos agressivos explícitos. Logo, é interessante notar como Cláudio se comporta de maneira violenta com a esposa ainda que não a agrida fisicamente em todos os momentos – inicialmente, predominam exemplos de violência silenciosa através de olhares controladores, proibições durante o cotidiano e restrições graduais da liberdade. Até nas cenas mais gráficas, a câmera não expõe o que está em tela e prefere ocultá-las; já as cenas brutais mais evidentes são reservadas para os últimos episódios, quando já houve uma escalada da violência para um tom lúgubre e pessimista.
Janete sofre toda espécie de tormento por conviver com Cláudio, desde ser violentada psicologicamente pelas atitudes do sujeito, forçada a assistir aos crimes dele até padecer em um ambiente hostil nos mínimos detalhes da rotina. Além dos escritores do livro (também roteiristas e produtores), José Henrique Fonseca, Izabel Jaguaribe e Rog de Souza constroem uma ambientação de tensão e medo a partir do design sonoro: são ruídos gerados pelo canto de pássaros e pelo uso de serras na casa que antecipam metaforicamente as ameaças iminentes. Inclusive, o som dos animais remete à sensação de aprisionamento das mulheres que se encontram com Cláudio, advinda, por exemplo, do apelido de Janete, do modo como ela era obrigada a observar os crimes do marido e o modus operandi do criminoso.
Ao passo que a dinâmica do casal evolui, as performances intensificam a percepção de que instituições falhas ampliam o problema do feminicídio. Eduardo Moscovis cria Cláudio como um policial abusador repleto de nuances, como o estilo manipulador silencioso que pode se tornar explicitamente violento a qualquer instante, e a influência nebulosa de seu passado para uma personalidade caótica. Já Camila Morgado vive Janete como uma dona de casa desesperada pela crueldade que sofre (a ponto de se sentir culpada pelo que vive), transtornada em um nível que perde sua identidade e se isola do mundo, mas ainda assim esperançosa de encontrar meios para sua sobrevivência. Detalhes discretos da direção completam essa caracterização, como o contreplongée que engrandece Cláudio em uma discussão e planos detalhes do sangramento da mão de uma vítima que cria um paralelismo com um ferimento de Janete.
Dos três núcleos de “Bom dia, Verônica“, aqueles envolvendo o âmbito pessoal de Verônica e o ambiente opressivo de Janete são os mais impactantes. Por sinal, esse efeito se prolifera quando os dois arcos se encontram no percurso da protagonista para ajudar tantas mulheres expostas a sérios riscos de morte e conseguir lidar com seus demônios internos. Ao longo dessa trajetória, a série custa a engrenar, já que os primeiros passos se desgastam por causa do descompasso entre narrativa e estilo visual. Quando engrena, fica evidente que se trata de uma jornada incômoda em direção à crença pessimista de que apenas o individualismo extremo pode combater a corrupção e a violência.
Um resultado de todos os filmes que já viu.