“BOB MARLEY: ONE LOVE” – (Não) construção em flashes ocos
Até 1974, a Etiópia foi um Estado monárquico independente. Seu último imperador foi Hailé Selassié, personagem de relevo não apenas naquele país, mas em toda a África e mesmo fora do continente, em razão do movimento rastafári. Segundo essa religião, Selassié era a reencarnação de Jesus Cristo ou a própria divindade em si, conhecida como Jeová, ou Jah. A escassez de informações a esse respeito em BOB MARLEY: ONE LOVE é exemplo do quão rasa é a cinebiografia.
O filme retrata a vida do famoso cantor de reggae Bob Marley, desde seu estrelato na Jamaica até o sucesso mundial e o falecimento. Ao seu lado, estiveram pessoas como a esposa Rita e os integrantes da banda The Wailers, fundamentais para que ele espalhasse suas mensagens de paz e justiça social.
Algumas cinebiografias têm abordagem abrangente da vida da pessoa a partir de determinado ponto cronológico, como “A teoria de tudo”. Outras se preocupam mais com a transcendência do biografado através da sua mensagem, como “Malcolm X”. Existem as que fazem um pouco de cada, é o caso de “Gandhi”. “One love” está no terceiro grupo, porém sem qualidade; trata-se de uma cinebiografia narrativamente pobre e mal estruturada, além de superficial.
O roteiro elaborado a oito mãos – Terence Winter, Frank E. Flowers, Zach Baylin e Reinaldo Marcus Green (o último, também diretor da obra) – faz com que a história comece quando o cantor vê sua carreira começar a explodir na mesma intensidade em que a Jamaica passa por um período politicamente turbulento (e violento). Passado esse início, o texto se desenvolve para abordar mais as ideias de Marley, em detrimento da sua vida, o que seria um recorte interessante se tivesse maior solidez. A perspectiva ideacional é abandonada no terceiro terço por um redirecionamento narrativo tradicional, caminho que não foi previamente pavimentado. O clímax dramático, por exemplo, não é devidamente construído, surgindo como uma discussão sobre fatos que o filme não mostra a priori (ignorando a sempre recomendável “show, don’t tell”) e que não são completamente fidedignos.
Existem flashbacks que se aproximam ao que é feito em “Ray”, contudo a sua utilização é péssima. No conteúdo, tratam de temas que mereciam mais do que flashes (o início do relacionamento com Rita e o preconceito sofrido em razão da cor da pele); na forma, o eventual uso de montagem paralela é inútil (a cena da cerimônia na fogueira com a contraposição com a versão jovem). O drama que poderia resultar do pretérito diegético acaba sendo cortado com momentos demasiado breves e sem muito impacto. Na verdade, a narrativa inteira é costurada através de flashes na medida em que não há uma confecção da trama com peças bem coesas e conectadas. As peças são coladas, ao invés de interligadas, como ocorre na relação entre o protagonista e seu braço direito, restrita a quatro cenas extremamente rápidas.
Nada disso seria tão problemático se a produção não fosse “chapa branca”, ainda pior que “Bohemian rhapsody“, não adentrando, portanto, nas polêmicas do biografado (não à toa, nos dois casos, pessoas próximas influenciaram na produção). “One love” é extremamente raso: quanto ao contexto político jamaicano (o limiar de uma guerra civil estabelecida, mas não justificada, sequer no modo como isso afeta o cantor para além de dados factuais), quanto às ideias de Marley (lançadas de maneira esparsa), quanto à sua religião (mostrar que ele leu sobre Hailé Selassié não é o mesmo que esclarecer ao público quem ele foi) e quanto à questão racial (limitada à sua infância e a uma personagem irrelevante). A cultura do movimento rastafári é exibida sem profundidade: Marley e seu grupo aparecem fumando maconha, mas não é explicada a sua relação com a religião. As controvérsias são ignoradas, sobretudo no que se refere ao fim da vida do protagonista. Acrítico, o filme coloca Marley afirmando que “não se mete com a política”, mas não reflete que, na verdade, sua atividade tem alto teor político.
Kingsley Ben-Adir é esforçado no papel principal esboçando uma expressão de tranquilidade, mas não demonstra uma fração da energia de Marley nas cenas de palco. Não causa surpresa que o ápice da película sejam as cenas de brainstorm para a elaboração das canções ou as de show, todavia isso não justifica a produção. Vale o mesmo para as principais músicas, cuja presença é enérgica, mas de uso bastante óbvio (salvo com “Redemption song”, a mais fácil de ser empregada com alguma função). Mesmo o que é positivo no filme se torna vazio: o figurino de Rita (Lashana Lynch, desperdiçada em um papel vazio) poderia ser a representação simbólica das bandeiras do marido (e da Jamaica), todavia a superficialidade com que elas são tratadas esvaziam esse potencial. Bob Marley levantava bandeiras defendendo a paz, os direitos humanos e a luta contra o racismo e a desigualdade. Isso está no filme, mas em flashes ocos, como todos os outros componentes que o integram.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.