“BLONDE” – A síndrome do fetiche
É inevitável a presença de ruídos na construção de obras biográficas. Incapazes de retratar totalmente a complexidade determinadora de figuras históricas, é interessante observar como determinadas produções utilizam desse deslocamento pré-determinado, brincando com a intersecção entre ator e personagem. Como dar vida a um ser real através de uma arte especializada em mentiras? Muitos filmes atravessam essa questão com bastante maestria, exibindo diversas habilidades de linguagem cinematográfica. Priorizando o último acima de todas as demais esferas, BLONDE desempenha uma estilística até interessante, mas peca pela redução provocada por uma visão bem fetichista da construção de imagens.
Abandonada pela mãe problemática e assombrada pela ausência de seu pai durante a sua infância, Norma Jean definitivamente não teve uma criação fácil. Crescida em meio ao estopim da Era de Ouro Hollywoodiana, ela encontra uma válvula de escape no mundo da atuação, na qual passa a investir com a ajuda de sua beleza. Conforme os alcances da última passam a lhe exigir a própria dignidade, entretanto, ela se vê dividida entre a sua essência e seu inesquecível alter ego: Marilyn Monroe.
Partindo dessa lógica da fragmentação da personalidade humana, não há como negar que existe um teor bastante intrigante na maneira como Andrew Dominik conduz visualmente a sua narrativa. Responsável por fazer jus a uma das maiores estrelas do cinema norte-americano, ele utiliza do princípio iconográfico que circunda a sua protagonista de maneira muito clara, separando-a em camadas divididas entre os espectros internos e os parâmetros superficiais.
Da janela comprimida em 4:3, que artificializa a sua relação com os filmes antigos, passando pelas fusões entre planos que rompem com uma concretude que poderia se fazer presente, e chegando à superexposição de luz que questiona a fidelidade do que está sendo ali contado, ele se filia a convenções que a todo momento nos lembram de que estamos acompanhando um filme.
Nesse sentido, é até interessante, apesar de inevitavelmente pouco inovador, como ele se dedica a um desmonte das fantasias projetadas pelos grandes estúdios da época, subvertendo a vasta filmografia de Marylin pela forma como se dedica aos impulsos de distorção que tomavam conta dos bastidores filmográficos.
É justamente no aprofundamento desses últimos, entretanto, que a obra encontra a sua maior fragilidade. Embora consiga sustentar esse seu microcosmos corrompido, é no tratamento de sua principal personagem que a direção naufraga, tornando-se uma vítima do próprio discurso que finge, em certos momentos, tentar reproduzir.
Apesar de algumas dessas decisões se justificarem pela calamidade com a qual Dominik retrata a construção de grandes ícones femininas, cursando um caminho notoriamente mais radical que a maior parte das biografias, não é difícil perceber a contradição residente em seus feitos. Isso porque é mínimo o grau de desenvolvimento da personagem que contrasta com o teor geral do longa, não apenas pouco contribuindo para o avanço de um produto já muito longo, como também até desonrando a importância histórica de Monroe.
Apesar da convincente atuação de Ana de Armas, que conquista com os ares de imponência que se esgueiram por detrás de um poder falso mas auto reconhecido, é frustrante a maneira como o diretor logo cedo associa as estratégias da personagem aos favores sexuais. Embora seja evidente serem ações contrárias a sua verdadeira vontade, tal escolha limita uma exploração mais vasta da real justificativa que trouxe Norma a esse mundo sombrio.
É como se a condição primária da protagonista sempre estivesse ligada a esse destino, inexistindo nela características que nos convençam de uma possível forma de resistência. Mesmo que algumas das passagens mais explícitas sejam até visualmente interessantes, pelas escolhas de lente, filtros específicos e enquadramentos – e que ao menos mantém a unidade de artificialização apontada no início da análise – a incapacidade do filme em separar a própria força condutora de sua orquestra de superficialidades, acaba tornando a peça vazia como um todo.
Não existe sequer a tentativa de retratar as muitas cenas de sexo explícito de uma forma que valorize a libertação de impulsos humanos, escolha que poderia em muito engrandecer essa suposta experiência de contraste entre aparências e desejos internos. Tem-se assim a condenação de Marylin Monroe ao fetiche, e a confirmação da cumplicidade que Andrew Dominik compartilha com todas as presenças horrendas que orbitaram a ascensão de Marylin.
Finalmente, seria injusto afirmar que a construção do lado mais carnal da obra irá desagradar a todos. Afinal, é até possível entendê-la como uma extensão da grande crítica realizada por “Blonde“, podendo-se dizer, por exemplo, que a multiplicidade das mesmas através da vasta duração do projeto reproduz a prisão viciosa, presa em um vácuo de distanciamento entre a sua constituição corporal e uma inibida solidificação como indivíduo, em que Marylin se encontra presa. Nesse caso, entretanto, é de se pensar que denúncias não se fazem com um mero apontar de dedos, e que mesmo impossibilitados de alcançar a verdade, devemos deixar minimamente claro aquilo que nos distancia daqueles que queremos criticar.