Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“BERNADETTE” – Tartaruga

Na Antiguidade, os chineses adotavam um processo de adivinhação baseado nos estalidos da parte plana do casco da tartaruga, aplicando fogo. Em uma passagem de Homero, a tartaruga é símbolo de veneno, antes de preparada, e de remédio, após sua preparação. No hinduísmo, o deus Vishnu tem em Kurma o seu segundo avatar, assumindo a forma de uma tartaruga na parte de baixo (e humana na parte de cima), servindo de suporte para o monte Mandara e assegurando a sua estabilidade (supostamente sustentando a Índia até hoje). Em BERNADETTE, as possibilidades simbólicas desse animal são diversificadamente exploradas.

Bernadette sempre fez o que pôde para ajudar seu marido a ser eleito Presidente da França. Por isso, esperou que, ao chegar ao Palácio Elysée, seria valorizada. Quando isso ocorre, ela se surpreende ao ser reduzida a uma humilhante insignificância. É nesse momento que Bernadette decide conquistar à força o espaço midiático que considera que merece.

(© Imovision / Divulgação)

A protagonista não é uma mera personagem fictícia. Trata-se de Bernadette Chirac, esposa de Jacques Chirac, vigésimo segundo presidente da França, de 1995 a 2007. Contudo, nos minutos iniciais, o filme alerta que é uma obra de ficção, razão pela qual não se constitui propriamente como uma cinebiografia baseada em fatos. Sua opção estilística e de gênero é de uma comédia alicerçada em uma fase da vida de uma pessoa real, algo que certamente não é tradicional nos filmes cuja base é minimamente factual (ainda mais biográfica). Graças a essa opção, há liberdade para elaborar um humor leve, certamente não é uma comédia de gargalhadas intensas, mas é agradável pela suavidade. A foto de Bernadette em cima da foto de Diana, a reverência de Pierre e os risos frouxos (quase pueris) da protagonista e de Bernard durante a repreensão de Claude são exemplos desses momentos cômicos.

Apesar de se assumir como uma adaptação livre dos fatos, a quase estreante diretora Léa Domenach usa quantidade considerável de imagens de arquivo, quando não as simula (com redução da razão de aspecto ou mescla entre cenas reais e fictícias), para transmitir uma sensação de naturalismo. Isso é interessante para fins de ambientação (o mesmo vale para as cenas no Eliseu), porém não é acompanhado quando os eventos reais mais básicos são mencionados. Por exemplo, em determinado momento, Jacques (Michel Vuillermoz) decide dissolver o parlamento, medida contra a qual Bernadette se opõe. Há um esvaziamento desse cenário fático na medida em que as razões da dissolução (e da opinião contrária) não são minimamente explorados. Em relação à política, que necessariamente faz parte do longa, a obra é bastante rasa, não permitindo que as vicissitudes da área conduzam a narrativa de forma alguma.

Da mesma forma, o roteiro de Domenach e Clémence Dargent atribui à heroína poderes mediúnicos, o que enfraquece sua solidez. A metáfora da tartaruga – que é empregada de maneira literal no filme – faz sentido em seu significado premonitório, mas não quanto à estabilidade que o animal representa. Torna-se risível, em sentido negativo, que Bernadette supere os números para as previsões políticas. Talvez a diretora pense em uma associação remota com a religiosidade, que é presente nas cenas em uma igreja e nos inusitados momentos musicais. Porém, a religiosidade não é direcionada a um significado surreal, mas a um simbolismo para a vida da protagonista, uma vida de pecados a serem confessados e de fé.

O roteiro tem a virtude de não vitimizar Bernadette, papel interpretado pela sempre magnética Catherine Deneuve. A despeito de seus incômodos “poderes mediúnicos”, a protagonista não é unidimensional, pois seus atos são capazes de causar danos a outras pessoas, inclusive aquelas por quem deveria prezar. Seu arco narrativo é bastante claro: da marginalização à emancipação. No começo, Jacques quer sua discrição absoluta, no que é apoiado pela filha e assessora, Claude (Sara Giraudeau). Dentre as relações interpessoais, a mais intrigante ocorre entre Claude e Jacques, havendo a sugestão de um complexo de Electra. Bernard (Denis Podalydès em papel discreto, mas provocativo) ajuda Bernadette em sua empreitada de refazimento da própria imagem, que passa por uma expressiva mudança de figurino. A transição serve também a ele próprio, que se identifica com ela (a relação entre eles, por sinal, é de uma ternura subaproveitada). Nessa jornada, a tartaruga é veneno. Antes da emancipação, a protagonista é instrumentalizada pelo marido, um momento dramático necessário para fins de evolução da trama. Aqui, a tartaruga é remédio.

Domenach é simpática a Bernadette, mas não o suficiente para retratá-la como mártir, tampouco como o epítome da bondade. Sua linha de raciocínio seria mais persuasiva se a protagonista saísse da mera intuição para participar da política, e se a política tivesse aprofundamento um pouco maior. É difícil se convencer, ainda, quando a tartaruga venenosa tem um ego tão grande quanto aquele que será envenenado.