“BENEDETTA” – Fatos, alegoria e crítica
É possível enxergar BENEDETTA a partir de três dimensões. A primeira é literal, já que o longa é inspirado em fatos; a segunda, alegórica; a terceira, crítica. A Itália renascentista torna-se instrumento para provocação e reflexão através de uma obra extremamente polêmica, mas também muito boa.
No século XVII, Benedetta é uma freira que começa a ter visões religiosas e, depois, eróticas. Suas perturbações aumentam com a entrada da jovem Bartolomea no convento, quando as duas desenvolvem um romance.
Após alguns anos sem destaque, Paul Verhoeven voltou aos holofotes com o excelente “Elle”, de 2016. “Benedetta” é muito diferente do longa de 2016, por exemplo por se passar séculos antes, mas guarda com ele aquilo que é característica tradicional da filmografia de Verhoeven: a polêmica. Uma história em que duas freiras se apaixonam seria controversa o suficiente, tratando-se dele, porém, é certo que há mais fontes para controvérsia, sobretudo a nudez escancarada e cenas de sexo. Por vezes, sua filmagem flerta com a pornografia lésbica (além de mero erotismo ou mesmo um soft porn), porém a ideia é justamente provocar e incomodar a plateia. Em verdade, o filme não começa com sugestão mas sim com o explícito, inclusive envolvendo a protagonista ainda na infância. Não há limites para Verhoeven nesse sentido e certamente isso restringe seu público-alvo.
Na primeira interpretação, o filme é a tradução ficcional de eventos reais. A parte sobrenatural da obra é questionada a todo momento, porém sem uma resposta (provavelmente porque não é possível chegar a uma resposta e porque a própria Igreja ignorou os fatos). Não obstante, a segunda dimensão interessa mais o texto escrito por Verhoeven com David Birke (e colaboração de Pascal Bonitzer, a partir do livro de Judith C. Brown), que faz de “Benedetta” uma alegoria para a repressão à homossexualidade. Como se sabe, a Igreja Católica é inimiga histórica das relações homoafetivas, de modo que o romance entre Bartolomea e Benedetta precisa ser escondido. Evidentemente, a necessidade de ocultação também decorre do fato de serem ambas freiras, porém, na visão alegórica, mais relevante é o fato de serem duas mulheres.
Entretanto, é a terceira dimensão a que mais interessa a Verhoeven. A crítica à Igreja vai para várias direções. A abadessa Felicita, interpretada por uma magistral Charlotte Rampling (a melhor do elenco), é a encarnação da hipocrisia em relação aos interesses financeiros. O convento não se interessa por pessoas (“não é casa de caridade”), mas pelo dinheiro que as pessoas podem levar-lhe (“precisa pagar para entrar”) – porém, sem assumir que é feita uma negociação velada. A inteligência é vista como um perigo desde a infância de Benedetta e, fiel à História, religião e política andam juntas (basta ver os soldados obedecendo o Núncio vivido por Lambert Wilson). Os ensinamentos cristãos são constantemente submetidos a interpretações variadas, como quando a protagonista afirma que “a vergonha (de um relacionamento homoafetivo) não existe sob a proteção do amor de Deus”, algo que seria contestado mesmo hodiernamente.
Verhoeven transpõe suas críticas à Igreja Católica de várias maneiras. Por exemplo, visualmente, a diferença dos quartos é gigantesca: quando Benedetta é uma freira qualquer, seu quarto, chamado de cela, tem uma cama de solteiro, não tem paredes e é cercado por cortinas semitransparentes; quando ela é promovida, o cenário é completamente o oposto. Virginie Efira tem bom desempenho no papel principal, principalmente quando sua personagem se transforma, ora como uma mensageira (como se incorporasse um espírito), ora como uma representante clerical (ao ser promovida). Daphné Patakia também vai bem, dando a várias camadas a Bartolomea, que é uma jovem de histórico sofrido, espalhafatosa em razão da infantilidade e sedutora ao fomentar desejos lascivos em Benedetta.
É possível citar ainda duas falhas da narrativa. A primeira é a frágil construção de personagens inseridos sem justificativa, nomeadamente os pais de Benedetta. Faz sentido que eles apareçam no começo para levar a filha ao convento (quando ela ainda era criança, e já bastante devota), porém não faz sentido que reapareçam sem aprofundamento (a justificativa de seu reaparecimento é o ingresso de Bartolomea, mas seria possível fazê-lo de outras formas). A segunda falha é o discurso relativo à nudez, que a protagonista declara ser vedada mesmo após ver uma freira mais velha se desnudando à sua frente.
Mesmo as falhas não são capazes de ofuscar as qualidades de “Benedetta” (e certamente a sexualidade pungente tampouco o faz). O filme é transgressor, subversivo e provocativo como a maioria (se não todos) dos filmes de seu realizador. Verhoeven goza com a perplexidade do público, mas não faz isso sem direção alguma (ou seja, a espetacularização da polêmica não é gratuita). Seu norte é a reflexão, algo que o filme estimula muito bem – às custas dessa mesma perplexidade.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.