“BELAS CRIATURAS” – O sobrenatural como o combatente [46 MICSP]
A nocividade da violência, principalmente em relação a adolescentes e crianças, tem uma extensão imensurável e imprevisível. O que BELAS CRIATURAS faz é apresentar o sobrenatural como o combatente, já que ele é igualmente imensurável e imprevisível. Ao invés de ser um filme sobre amizade, ele é sobre um necessário salvamento por vias perigosas.
O adolescente Arnar (“Addi”) sempre se recusou a acreditar nas habilidades mediúnicas de sua mãe, afirmando que isso não existe, até que o mesmo talento se manifesta nele. Em certo momento, ele convida Baldur (“Balli”) a integrar a violenta gangue da qual faz parte, sentindo que há algo muito grave no entorno do colega.
Não há nada que deixe claro o que impulsiona Addi a sentir empatia por Balli. Talvez seja o aparecimento do frágil menino na televisão, vê-lo desesperado com um canivete na mão, um arrependimento profundo ou mesmo uma sensação de que deveria mudar de postura. De todo modo, aquele se torna o “anjo da guarda” deste, que é de fato muito frágil.
A fragilidade de Balli começou muito cedo (como ele conta em relação ao olho esquerdo, por exemplo) e sua vida é uma sequência de tormentas que abalariam qualquer pessoa, ainda mais naquela idade. O grito emanado por Áskell Einar Pálmason no papel de Balli não é de libertação, mas de desespero e de vontade de fugir da própria existência. O bullying que ele sofre é uma fração pequena da violência que permeia a vida de todas as pessoas do filme, já que todas estão envolvidas em alguma manifestação dessa realidade, como sujeitos ou como objetos. Balli é um garoto pacato e com interesses exóticos (os potes em seu quarto), mas à beira de tomar medidas extremas diante das agressões que o acometem.
Uma dessas agressões é o abandono familiar, do que resulta seu descuido consigo mesmo em termos de higiene e aparência. O primeiro a perceber isso é Addi, vivido com sensibilidade tocante por Birgir Dagur Bjarkason. À primeira vista, Balli precisa de um amigo, então Addi inclui três (ele mesmo e os outros dois da gangue) na sua companhia. Aos poucos, fica claro que as aparências levam a conclusões precipitadas. Balli precisa de muito mais do que amizades, sobretudo quando seu padrasto Svenni (Ólafur Darri Ólafsson) retorna em sua vida.
Além disso, ao contrário do que pode parecer, a vida de Addi não é de tranquilidade, havendo um backstory em relação aos pais que é justificadamente traumático. É com base nisso que o diretor e roteirista Guðmundur Arnar Guðmundsson tece com delicadeza a insuficiência das soluções irrefletidas: colocar a criança (ou o adolescente) para fazer um esporte pode não ser suficiente para desafogar suas mágoas e frustrações. Quando necessário, contudo, Arnar Guðmundsson vai a um extremo gráfico chocante, como em relação à violência sofrida por Konni. Viktor Benóný Benediktsson transmite bem a ferocidade do líder da gangue, que é resultado óbvio do mal que acomete a ele e aos outros adolescentes – aliás, são apenas adolescentes, ainda com espinhas no rosto e hormônios à flor da pele, são “belas criaturas”.
A violência se torna viral, seja ela simbólica ou literal, verbal ou física, sexual ou não e em casa ou fora dela. O fato de os garotos estarem quase sempre fumando faz parte da mise en scène, como um apontamento enfático de que há algo muito errado. Quando o trio Addi, Kokki e Siggi visita Balli – e este, na primeira vez, instintivamente, se encolhe perante os demais, preparando-se para ser agredido como de costume -, ele oferece “bitucas” de cigarro a eles, o que é bastante representativo da condição em que eles se encontram. A casa de Balli (escura, bagunçada, suja, com portas quebradas etc.) é largada pela sua mãe, que também larga o cigarro e os deixa com os restos. São, é claro, restos de uma podridão que faz com que eles se iludam, acreditando ter chegado à idade adulta.
Como solução para o conflito principal, a mediunidade de Addi traça uma rota que é, ela mesma, digna de lamento, mas não tão lamentável quanto o que já havia antes dessa rota. Balli confia nos “poderes” de Addi mais do que o próprio amigo, aprendendo precocemente que o sobrenatural pode ser um aliado de combate (por assim dizer, o combatente) em uma duríssima batalha que ele, sozinho, não conseguiria vencer.
* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.