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“BARBA ENSOPADA DE SANGUE” – Medo de fantasmas [48 MICSP]

Enquanto Gabriel, o protagonista de BARBA ENSOPADA DE SANGUE, busca os fantasmas do passado, esses mesmos fantasmas assombram o povo de Armação. A despeito da sua base nada original, o longa tem uma estética apurada e interessantes flertes com gêneros e estilos inesperados para essa base.

Depois do falecimento de seu pai, Gabriel vai para Armação em busca de suas origens, notadamente em relação ao seu avô, cuja morte ocorreu em circunstâncias desconhecidas. No local, Gabriel se depara com mistérios envolvendo o “gaudério” (seu avô), um esqueleto de baleia e um sigilo absoluto das pessoas da cidade.

(© RT Features / Divulgação)

Do ponto de vista temático, o roteiro escrito pelo diretor Aly Muritiba junto de Jessica Candal (e baseado no livro de Daniel Galera) tem duas preocupações periféricas. A primeira se refere à questão ambiental da caça às baleias, apontada como a principal atividade econômica do litoral sul do Brasil. O texto expõe a crueldade humana – que se faz presente também na própria trama envolvendo o avô de Gabriel e o próprio protagonista – a partir de uma explicação sobre como essa atividade ocorria. De maneira crítica, aponta que a cidade foi edificada à base de argamassa de óleo de baleia, demonstrando que tudo foi construído, em última análise, graças a essa crueldade.

A caça às baleias, nesse sentido, se torna um legado censurado pelo filme, de maneira similar ao que ocorre com a segunda preocupação, concernente ao retrato da cidade de interior. Existe uma aproximação com o realismo fantástico nessa parte, sobretudo nas narrativas que constituem lendas sobre o passado do “gaudério” – que, por sua vez, também fazia seus relatos fantásticos -, contudo, o que mais chama a atenção é a visão nada idílica do interior. A tradição de uma vida pacata se impõe de maneira contundente, o que motiva uma reação agressiva a qualquer ameaça a esse modo de vida. Os cidadãos são reativos à busca de Gabriel pelo esclarecimento dos fatos pretéritos, mas essa reação é vista também, por exemplo, pelo racismo relatado por dona Santina. A sensação é de que os grilhões do interior mantêm os cidadãos encarcerados, como ocorre com Jasmine (Thainá Duarte), que não sai de lá porque “é complicado”.

Interpretado pelo carioca Gabriel Leone (que não convence no sotaque gaúcho), o protagonista faz um mergulho em um passado pantanoso e perigoso. Muritiba aproveita essa ideia para traduzi-la metaforicamente na fotografia, utilizando intensamente cores azuis e esverdeadas, ora na iluminação (como na cena em que acaba a luz no bar), ora no design de produção (na Delegacia de Polícia, no figurino de Gabriel). Há em “Barba ensopada de sangue” um pouco de terror, como na ideia de casa mal-assombrada e alguns jump scares, além da própria atmosfera sombria que permeia o longa.

Em termos de produção, o filme é muito bom, como se percebe da excelente maquiagem em uma cena específica. Por outro lado, ele não se livra de alguns clichês, como a gravidez e a obsessão do herói da trama. Na realidade, a própria premissa do longa é clichê ao trazer a história do forasteiro mal recebido que deseja vasculhar um pretérito que os demais não querem que seja descoberto (os fantasmas do passado). A única exceção, isto é, de subversão do clichê, se refere à cachorra de Gabriel. A obra de Muritiba é boa, mas falta-lhe a ousadia para inovar. Talvez ele também estivesse com medo de algum fantasma.

* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).